Deserção - Crime militar - Prisão cautelar - Decretação
compulsória – Inadmissibilidade (Transcrições)
HC 112487 MC/PR*
RELATOR: Min. Celso de Mello
DECISÃO: Trata-se
de “habeas corpus”, com pedido de medida cautelar, impetrado
contra decisão que, proferida pelo E. Superior Tribunal Militar, acha-se
consubstanciada em acórdão assim ementado:
“‘Habeas Corpus’. Deserção (CPM, art.
187). Ausência desautorizada de militar ao quartel por mais
de oito dias. Alegação da Defesa de ilegalidade da prisão
preventiva que fere as garantias constitucionais. Improcedência. O
crime de Deserção é classificado como propriamente militar, recebendo
tratamento diferenciado pelo legislador ao excepcionar a prisão
cautelar. Não havendo ilegalidade ou abuso de poder, impõe-se a
denegação da Ordem de ‘Habeas Corpus’. ‘Habeas Corpus’ denegado.
Decisão Unânime.”
(HC 148-38.2011.7.00.0000/PR, Rel. Min.
OLYMPIO PEREIRA DA SILVA JUNIOR - grifei)
Postula-se, em sede liminar, seja garantido,
ao ora paciente, o exercício do direito de estar em liberdade, “a
fim de evitar que ele seja automaticamente preso mediante a invocação
pura e simples da vedação legal de concessão de liberdade
provisória para os acusados da prática do crime de deserção, prevista no
Código de Processo Penal Militar” (grifei).
Passo, desse modo, à análise
do pedido de medida liminar. E, ao fazê-lo, observo
que os elementos produzidos nesta sede processual revelam-se suficientes
para justificar, na espécie, o acolhimento
da pretensão cautelar deduzida pela parte impetrante.
Cumpre ter presente, por
relevante, no que concerne à discussão em torno
da prisão cautelar prevista no art. 453 do CPPM, que a colenda
Segunda Turma desta Suprema Corte firmou orientação no
sentido de que a Justiça Militar deve justificar, em cada
situação ocorrente, a imprescindibilidade da adoção de
medida constritiva do “status libertatis” do indiciado/réu, sob
pena de caracterização de ilegalidade ou de
abuso de poder na decretação de prisão meramente
processual:
“‘Habeas Corpus’. 1. No caso concreto, alega-se
falta de fundamentação de acórdão do Superior Tribunal Militar (STM) que
revogou a liberdade provisória do paciente por ausência de indicação
de elementos concretos aptos a lastrear a custódia cautelar. 2. Crime
militar de deserção (CPM, art. 187). 3. Interpretação
do STM quanto ao art. 453 do CPPM (‘Art. 453. O
desertor que não for julgado dentro de sessenta dias, a contar do dia de sua
apresentação voluntária ou captura, será posto em liberdade, salvo se tiver
dado causa ao retardamento do processo’). O acórdão impugnado aplicou a tese
de que o art. 453 do CPPM estabelece o prazo de 60 (sessenta) dias como
obrigatório para a custódia cautelar nos crimes de deserção. 4. Segundo
o Ministério Público Federal (MPF), a concessão da liberdade
provisória, antes de ultimados os 60 (sessenta) dias, previstos no art. 453 do
CPPM, não implica qualquer violação legal. O ‘Parquet’ ressalta, também,
que o decreto condenatório superveniente, proferido pela Auditoria da 8ª CJM,
concedeu ao paciente o direito de apelar em liberdade, por ser primário e de
bons antecedentes, não havendo qualquer razão para que o mesmo seja submetido a
nova prisão. 5. Para que a liberdade dos cidadãos
seja legitimamente restringida, é necessário que o
órgão judicial competente se pronuncie de modo expresso, fundamentado e,
na linha da jurisprudência deste STF, com relação às prisões
preventivas em geral, deve indicar elementos concretos aptos a
justificar a constrição cautelar desse direito fundamental (CF,
art. 5º, XV - HC nº 84.662/BA, Rel. Min. Eros Grau, 1ª Turma, unânime,
DJ 22.10.2004; HC nº 86.175/SP, Rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma, unânime,
DJ 10.11.2006; HC nº 87.041/PA, Rel. Min. Cezar Peluso, 1ª Turma,
maioria, DJ 24.11.2006; e HC nº 88.129/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa,
Segunda Turma, unânime, DJ 17.8.2007). 6. O acórdão impugnado,
entretanto, partiu da premissa de que a prisão
preventiva, nos casos em que se apure suposta prática do crime de
deserção (CPM, art. 187), deve ter duração automática de 60
(sessenta) dias. A decretação judicial da custódia cautelar deve atender,
mesmo na Justiça castrense, aos requisitos
previstos para a prisão preventiva nos termos do art. 312 do CPP. Precedente
citado: HC nº 84.983/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª
Turma, unânime, DJ 11.3.2005. Ao reformar a decisão do Conselho
Permanente de Justiça do Exército, o STM não indicou quaisquer elementos
fático-jurídicos. Isto é, o acórdão impugnado limitou-se a
fixar, ‘in abstracto’, a tese de que ‘é incabível a concessão de
liberdade ao réu, em processo de deserção, antes de exaurido o prazo previsto
no art. 453 do CPPM’. É dizer, o acórdão impugnado não conferiu
base empírica idônea apta a fundamentar, de modo concreto, a
constrição provisória da liberdade do ora paciente (CF, art. 93, IX). Precedente
citado: HC nº 65.111/RJ, julgado em 29.5.1987, Rel. Min.
Célio Borja, Segunda Turma, unânime, DJ 21.8.1987). 7. Ordem deferida
para que seja expedido alvará de soltura em favor do ora paciente.”
(HC 89.645/PA, Rel. Min. GILMAR MENDES - grifei)
Impende rememorar, quanto ao aspecto ora
ressaltado, valioso precedente emanado do
próprio E. Superior Tribunal Militar, no qual se
acentuou que a prisão processual prevista no
dispositivo inscrito no art. 453 do CPPM não prescinde da
demonstração da existência de situação de real
necessidade, apta a ensejar, ao
Estado, quando efetivamente configurada, a adoção
- sempre excepcional - dessa medida constritiva de caráter
pessoal:
“‘HABEAS CORPUS’. LIBERDADE
PROVISÓRIA.
1. A nova sistemática constitucional
referente a prisão cautelar fundada no respeito à dignidade da pessoa
humana, no princípio da presunção de inocência, no ‘due
process of law’ e na garantia da motivação de todas as
decisões judiciais, impede a prisão processual do cidadão sem que
haja concretas razões que impeçam a manutenção da liberdade individual.
2. Dispositivos, como o arts. 270 e 453
do Código de Processo Penal Militar, que vedam ‘ex lege’, sem
motivação, a concessão de liberdade provisória, são incompatíveis
com a ordem constitucional. Não tem cabimento, portanto, o entendimento
segundo o qual o acusado pelo crime de deserção deve permanecer preso
por 60 (sessenta) dias, até que se julgue a ação penal.
3. A superveniência de decisão condenatória recorrível,
em nada altera a ilegalidade de
prisão mantida sem elementos concretos a ensejarem a custódia cautelar.
Se o acusado tinha direito à liberdade provisória até a sentença condenatória
recorrível, inexistindo fato concreto que importasse necessidade da prisão
processual para acautelar o feito, continuará tendo direito de permanecer em
liberdade, enquanto recorre às superiores instâncias.
4. Ordem concedida, por maioria,
para cassar decisão de 1º grau que negava ao acusado o direito
de apelar em liberdade e conceder-lhe o referido direito nos termos
do art. 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal, c/c o art. 467, ‘d’,
do CPPM.
5. Decisão Majoritária.”
(HC 2008.01.034520-5/CE, Rel. Min. FLAVIO
FLORES DA CUNHA BIERRENBACH - grifei)
Todos sabemos que a privação
cautelar da liberdade individual é sempre
qualificada pela nota da excepcionalidade. Não
obstante o caráter extraordinário de que se reveste, a prisão preventiva pode
efetivar-se, desde que o ato judicial que a formalize tenha
fundamentação substancial, apoiada em elementos concretos
e reais que se ajustem aos pressupostos abstratos -
juridicamente definidos em sede legal - autorizadores da decretação
dessa modalidade de tutela cautelar penal (RTJ 134/798,
Rel. p/ o acórdão Min. CELSO DE MELLO).
É por essa razão que esta
Corte, em pronunciamento sobre a matéria (RTJ
64/77), tem acentuado, na linha de autorizado
magistério doutrinário (JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo
Penal Interpretado”, p. 376, 2ª ed., 1994, Atlas; PAULO LÚCIO NOGUEIRA, “Curso
Completo de Processo Penal”, p. 250, item n. 3, 9ª ed., 1995, Saraiva;
VICENTE GRECO FILHO, “Manual de Processo Penal”, p. 243/244, 1991,
Saraiva), que, uma vez comprovada a materialidade
dos fatos delituosos e constatada a existência de
meros indícios de autoria - e desde que concretamente
ocorrente qualquer das situações referidas no art. 312 do Código de
Processo Penal -, torna-se legítima a decretação, pelo
Poder Judiciário, dessa especial modalidade de prisão cautelar.
Para que se legitime a
prisão cautelar, no entanto, impõe-se que os órgãos
judiciários competentes, inclusive aqueles estruturados no âmbito
da Justiça Militar, tenham presente a advertência do
Supremo Tribunal Federal no sentido da estrita observância
de determinadas exigências (RTJ 134/798),
em especial a demonstração - apoiada em
decisão impregnada de fundamentação substancial - que evidencie
a imprescindibilidade, em cada situação ocorrente, da
adoção da medida constritiva do “status libertatis” do
indiciado/réu, sob pena de caracterização de
ilegalidade ou de abuso de poder na decretação da
prisão meramente processual (RTJ 180/262-264,
Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 80.892/RJ, Rel. Min. CELSO
DE MELLO, v.g.).
Com efeito, nada impede que o Poder
Judiciário decrete, excepcionalmente, a prisão cautelar
do indiciado ou do réu, desde que existam,
no entanto, quanto a ela, reais motivos
evidenciadores da necessidade de adoção dessa
extraordinária medida constritiva de ordem pessoal (RTJ 193/936,
Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 71.644/MG, Rel. Min. CELSO
DE MELLO, v.g.).
A denegação, ao indiciado ou ao
acusado, do direito de permanecer em liberdade depende,
para legitimar-se, da ocorrência concreta de
qualquer das hipóteses referidas no art. 312 do CPP (RTJ 195/603,
Rel. Min. GILMAR MENDES - HC 84.434/SP, Rel. Min. GILMAR
MENDES - HC 86.164/RO, Rel. Min. AYRES BRITTO, v.g.),
a significar, portanto, que, inexistindo fundamento
autorizador da privação meramente processual da liberdade do réu,
esse ato de constrição reputar-se-á ilegal, porque
destituído, em referido contexto, da necessária
cautelaridade (RTJ 193/936):
“(...) PRISÃO CAUTELAR - CARÁTER
EXCEPCIONAL.
- A privação cautelar da liberdade
individual reveste-se de caráter excepcional, somente devendo
ser decretada em situações de absoluta necessidade.
A prisão processual, para legitimar-se em
face de nosso sistema jurídico, impõe - além da satisfação
dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova
da existência material do crime e indício suficiente de autoria) - que
se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea,
razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária
medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do
réu.
- A questão da decretabilidade
da prisão cautelar. Possibilidade excepcional, desde
que satisfeitos os requisitos mencionados no art. 312 do CPP.
Necessidade da verificação concreta, em cada
caso, da imprescindibilidade da adoção dessa medida
extraordinária. Doutrina. Precedentes.”
(HC 89.754/BA, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Em suma: a prisão cautelar (“carcer
ad custodiam”) - que não se confunde com
a prisão penal (“carcer ad poenam”) - não objetiva
infligir punição à pessoa que sofre a sua decretação. Não
traduz, a prisão cautelar, em face da estrita finalidade
a que se destina, qualquer idéia de sanção. Constitui, ao
contrário, instrumento destinado a atuar “em benefício
da atividade desenvolvida no processo penal” (BASILEU GARCIA, “Comentários
ao Código de Processo Penal”, vol. III/7, item n. 1, 1945, Forense), tal
como esta Suprema Corte tem proclamado:
“A PRISÃO PREVENTIVA - ENQUANTO
MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR - NÃO TEM
POR OBJETIVO INFLIGIR PUNIÇÃO ANTECIPADA AO
INDICIADO OU AO RÉU.
- A prisão preventiva não pode - e não deve - ser
utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada
daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico
brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio
da liberdade, incompatível com punições sem processo e
inconciliável com condenações sem defesa prévia.
A prisão preventiva - que não deve ser
confundida com a prisão penal - não objetiva infligir punição àquele que
sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar
que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida
no processo penal.”
(RTJ 180/262-264, Rel. Min. CELSO DE
MELLO)
Daí a clara advertência do
Supremo Tribunal Federal, que tem sido reiterada em diversos julgados, no
sentido de que se revela absolutamente
inconstitucional a utilização, com fins punitivos, da prisão
cautelar, pois esta não se destina a punir o indiciado ou o réu, sob
pena de manifesta ofensa às garantias constitucionais da presunção
de inocência e do devido processo legal, com a conseqüente (e
inadmissível) prevalência da idéia - tão cara aos
regimes autocráticos - de supressão da liberdade individual, em um contexto de
julgamento sem defesa e de condenação sem
processo (HC 93.883/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Isso significa, portanto, que o
instituto da prisão cautelar - considerada a função exclusivamente
processual que lhe é inerente - não pode ser
utilizado com o objetivo de promover a antecipação satisfativa da
pretensão punitiva do Estado, pois, se assim fosse lícito
entender, subverter-se-ia a finalidade da
prisão preventiva, daí resultando grave
comprometimento ao princípio da liberdade (HC 89.501/GO,
Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Sendo assim, e em face das razões expostas,
defiro o pedido de medida liminar, em ordem a
assegurar, ao ora paciente, nos autos da Instrução Provisória
de Deserção nº 0000002-41.2011.7.05.0005 (Auditoria da 5ª
Circunscrição Judiciária Militar), até final julgamento da presente
ação de “habeas corpus”, o direito de não sofrer prisão cautelar em
decorrência da mera invocação do art. 453 do
CPPM.
Comunique-se, com urgência, transmitindo-se
cópia da presente decisão ao E. Superior
Tribunal Militar (HC 0000148-38.2011.7.00.0000/PR) e ao
Senhor Juiz-Auditor da 5ª Circunscrição Judiciária Militar (Instrução
Provisória de Deserção nº 0000002-41.2011.7.05.0005).
Publique-se.
Brasília, 16 de maio de 2012.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
*decisão publicada no DJe de 21.5.2012
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