PROCESSO PENAL E EXECUÇÃO PENAL.
HABEAS CORPUS. FALTA GRAVE. SINDICÂNCIA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR.
OITIVAS SEM A PRESENÇA DE ADVOGADO. ASSISTÊNCIA DE AGENTE PENITENCIÁRIA.
IMPOSSIBILIDADE. ART. 59 DA LEP QUE ASSEGURA O DIREITO DE DEFESA. NULIDADE.
RECONHECIMENTO. 1. A judicialização da execução penal representa um dos grandes
passos na humanização do sistema penal. Como corolário da atividade judicial
encontra-se o devido processo legal, de cujo feixe de garantias se notabiliza a
ampla defesa. Prescindir-se da defesa técnica no acompanhamento da colheita da
prova em sindicância para apuração de falta grave, invocando-se a Súmula
Vinculante n. 5, implica ilegalidade sob dois aspectos: a) os precedentes que a
embasaram não se referem à execução penal; e, b) desconsidera-se a condição de
vulnerabilidade a que submetido o encarcerado. Precedentes. 2. Diante da
necessidade sistêmica de preservação das conquistas democráticas da
judicialização da execução penal, é inconcebível o afastamento do devido
processo legal, o que acarretaria um revés do significativo avanço humanitário
anteriormente alcançado. 3. Artigo 59 da LEP que assegura o direito de ampla
defesa. É de se perceber que, in casu, ela não foi exercida a contento, pois a
oitiva do reeducando foi acompanhada apenas por agente penitenciária, o que não
se mostra possível. A autodefesa é renunciável, jamais poderia sê-lo a defesa
técnica. O Paciente foi ouvido sem a intervenção do defensor. É impensável
admitir-se que tal atuação seja apta a sanar a imprestabilidade da instrução
írrita. 4. Ordem concedida para, cassando o acórdão atacado, anular a
sindicância para apuração de falta grave, em tese, ocorrida em 20/05/2008, pelo
Paciente, bem como todos os efeitos dela decorrentes. (Superior Tribunal de
Justiça STJ; HC 186.525; Proc. 2010/0180165-4; RS; Sexta Turma; Relª Minª Maria
Thereza Assis Moura; Julg. 19/04/2012; DJE 30/04/2012)
VOTO
MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS
MOURA (Relatora):
O
objeto da impetração
cinge-se ao pedido
de anulação do
processo administrativo disciplinar,
em face do cerceamento da ampla defesa e do contraditório, em razão da ausência de defensor na sindicância. Em
caso semelhante esta Sexta Turma, no julgamento do habeas corpus n. 135.082/SP, ocorrido em 03.02.2011, de minha
relatoria, cassou o acórdão atacado,
para restabelecer a decisão de primeiro grau, que anulou
a sindicância para apuração de
falta grave, em razão da ausência de
advogado. O acórdão restou assim ementado:
PROCESSO PENAL
E EXECUÇÃO PENAL.
HABEAS CORPUS . FALTA
GRAVE. SINDICÂNCIA. INSTRUÇÃO.
OITIVAS SEM A PRESENÇA DE
ADVOGADO. NULIDADE RECONHECIDA
EM PRIMEIRO GRAU.
AGRAVO MINISTERIAL. REFORMA. FUNDAMENTO:
SÚMULA VINCULANTE 5.
ILEGALIDADE. RECONHECIMENTO. 1. A
judicialização da execução penal representa um dos grandes passos na
humanização do sistema
penal. Como corolário
da atividade judicial encontra-se o devido processo legal, de cujo
feixe de garantias se notabiliza a ampla
defesa. Prescindir-se da
defesa técnica no
acompanhamento da colheita da prova em sindicância para apuração
de falta grave, invocando-se a Súmula
Vinculante n. 5,
implica ilegalidade sob
dois aspectos: a) os precedentes
que a embasaram
não se referem
à execução penal;
e, b) desconsidera-se a
condição de vulnerabilidade a
que submetido o encarcerado.
2. Ordem
concedida para, cassando
o acórdão atacado, restabelecer a decisão de
primeiro grau, que
anulou a sindicância para
apuração de falta grave, em tese,
ocorrida em 29/11/2007, pelo paciente.
De saída,
penso ser importante,
tecer alguns comentários
sobre a aplicabilidade da Súmula Vinculante n. 5 ao
universo da execução penal.
É manifesta a diversidade da
situações entre a enfocada neste mandamus e aquela
que envolveu a
edição de referido
verbete. Arrimou-se tal consolidação
jurisprudencial sobre precedentes
vinculados ao Direito Administrativo, verbis:
Recurso extraordinário. 2.
Processo Administrativo Disciplinar.
3. Cerceamento de
defesa. Princípios do
contraditório e da
ampla defesa. Ausência de defesa técnica por advogado. 4. A
falta de defesa técnica por advogado no
processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição. 5. Recursos extraordinários conhecidos e
providos. (RE 434059, Relator(a): Min.
GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 07/05/2008,
DJe-172 DIVULG 11-09-2008
PUBLIC 12-09-2008 EMENT
VOL-02332-04 PP-00736 LEXSTF
v. 30, n.
359, 2008, p. 257-279)
A extensão da garantia
constitucional do contraditório (art. 5º, LV) aos procedimentos administrativos não tem o
significado de subordinar a estes toda a normatividade referente aos feitos judiciais, onde é indispensável a atuação
do advogado. (AI 207197
AgR, Relator(a): Min.
OCTAVIO GALLOTTI, Primeira Turma,
julgado em 24/03/1998,
DJ 05-06-1998 PP-00006
EMENT VOL-01913-03 PP-00620)
Agravo regimental a que
se nega
provimento, porquanto não trouxe o agravante
argumentos suficientes a
infirmar os precedentes
citados na decisão
impugnada, no sentido
de que, uma
vez dada a
oportunidade ao agravante
de se defender, inclusive
de oferecer pedido
de reconsideração, descabe falar
em ofensa aos princípios da ampla defesa
e do contraditório no fato de se considerar dispensável, no
processo administrativo, a presença de
advogado, cuja atuação, no âmbito judicial, é obrigatória. (RE
244027 AgR, Relator(a):
Min. ELLEN GRACIE,
Primeira Turma, julgado em 28/05/2002, DJ 28-06-2002 PP-00123
EMENT VOL-02075-06 PP-01289)
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL
DE CONTAS. TOMADA
DE CONTAS ESPECIAL:
CONCEITO. DIREITO DE
DEFESA: PARTICIPAÇÃO DE
ADVOGADO. I. -
A Tomada de Contas
Especial não constitui procedimento administrativo disciplinar. Ela tem por escopo a defesa da coisa pública.
Busca a Corte de Contas, com tal medida,
o ressarcimento pela lesão causada ao Erário. A Tomada de Contas é
procedimento administrativo, certo
que a extensão
da garantia do contraditório (C.F.,
art. 5º, LV)
aos procedimentos administrativos não exige a
adoção da normatividade
própria do processo
judicial, em que é indispensável
a atuação do
advogado: AI 207.197-AgR/PR, Ministro Octavio
Gallotti, "DJ" de
05.6.98; RE 244.027-AgR/SP, Ministra
Ellen Gracie, "DJ" de
28.6.2002. II. - Desnecessidade de intimação pessoal para a sessão
de julgamento, intimados os
interessados pela publicação
no órgão oficial.
Aplicação subsidiária do disposto no
art. 236, CPC.
Ademais, a publicidade
dos atos administrativos dá-se
mediante a sua
veiculação no órgão oficial. III. - Mandado de Segurança
indeferido. (MS 24961, Relator(a): Min.
CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 24/11/2004,
DJ 04-03-2005 PP-00012
EMENT VOL-02182-02 PP-00332 RT v. 94, n. 836, 2005, p. 96-103
LEXSTF v. 27, n. 316, 2005, p. 217-232
RTJ VOL-00193-01 PP-00347)
Por mais
que sejam relevantes
os cânones que
informam tal ramo
do Direito, é evidente que se faz
necessário reconhecer, aqui, o descrimen. Não se está a tratar de um mero procedimento administrativo
disciplinar em que um sujeito, sobre o qual recai a suspeita de uma falta, pode,
plenipotenciário de seus direitos e prerrogativas, demonstrar a sua inocência.
Não. Diante das condições a que
submetidos os detentos, qualquer tentativa de equiparação com os sujeitos que, do lado de
cá das grades, podem, per si, fazer valer a dignidade
da pessoa humana,
soa desconstextualizada. Lembre-se
com ALEXANDRE ROSA:
Assumindo-se a postura garantista
- que nada mais é do que cumprir a Lei Maior,
Constituição - não
pode ser admitida
qualquer situação que afronte
os Direitos e Garantias individuais dos indivíduos que se escondem por detrás da figura do apenado pobre (...) Dito de outra forma, o argumento deve
ser universal, ter
sentido em relação
ao sistema (coerência
e consistência) e
ter consequências aceitáveis.
(...) Isso porque
as decisões jurídicas precisam ter sentido tanto em
relação ao sistema jurídico de que se trata
quanto em relação ao mundo. [O juiz (garantista) e a execução penal por uma racionalidade consequencialista
(MacCormick). Crítica à execução penal.
Org. Salo de
Carvalho. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2002,
p. 413-416]. -Ora,
é incontroverso o significativo avanço
humanitário alcançado com a judicialização da execução penal, não sendo de
bom aviso o discurso constante do aresto guerreado - que representa, penso,
significativo revés.
Colaciona-se, neste
sentido, a lição
da Professora da
Universidade de Coimbra, ANABELA MIRANDA RODRIGUES:
Pode dizer-se que, a partir de
certa altura - que corresponde ao período de
afirmação dos direitos
fundamentais do recluso
e do princípio
da legalidade na
execução -, o que estava
em causa já
era mais do que
estabelecer um
controle da execução
das penas e
medidas de segurança privativas
de liberdade por
entidade diferente da
que tinha por
função realizá-la materialmente. (...)
O que estava em causa era ter-se reconhecido que a tutela efectiva dos direitos
dos reclusos supõe
que estes possam
dirigir-se a órgãos jurisdicionais. Pese embora o labor legislativo de conformação do
estatuto jurídico do recluso - ou, de uma certa perspectiva, exactamente
por isso - tornou-se essencial
a institucionalização de um órgão
jurisdicional a que coubesse fiscalizar
o âmbito das
limitações àqueles direitos.
A não ser assim, estar-se-ia sempre na
iminência de que
a aplicação prática
das leis penitenciárias acabasse
por esvaziar princípios garantísticos. (...) Entretanto, fortalecido,
entre nós, o
movimento de afirmação
dos direitos do recluso, a sua
consolidação impunha uma protecção jurisdicional e
um controle da
actividade da administração
penitenciária de elevado perfil. (...) Do que se trata, com efeito, é de converter a intervenção
jurisdicional em garante
da execução das
penas e medidas
de segurança privativas de liberdade, na
medida em que a sua
modelação afecte directamente
os direitos do reclusos.
(Novo olhar sobre a questão
penitenciária. São Paulo: Ed. RT, 2001, p. 130-137).
Assim, seja
pela questão dos
precedentes que suportaram
a Súmula Vinculante 5, todos desvinculados da Execução
Penal, seja pela necessidade sistêmica de preservação
das conquistas democráticas
de sua judicialização, é
imperioso o restabelecimento da decisão de primeiro grau.
Não ignoro a da existência de
precedente desta Corte em sentido contrário da posição ora esposada:
HABEAS CORPUS.
EXECUÇÃO PENAL. FALTA
GRAVE. SINDICÂNCIA INSTAURADA
PARA APURAÇÃO DOS
FATOS. REEDUCANDO REGULARMENTE
OUVIDO. PARTICIPAÇÃO DE ADVOGADO DA
FUNAP. OBSERVÂNCIA AOS
PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. INEXISTE
NULIDADE NA OITIVA DE
TESTEMUNHA SEM A
PRESENÇA DO REEDUCANDO OU
DE SEU ADVOGADO.
PARECER DO MPF
PELA DENEGAÇÃO Documento: 1139725 - Inteiro Teor do Acórdão -
Site certificado - DJe: 30/04/2012 Página
1 1 de 14Superior Tribunal de JustiçaDO WRIT. ORDEM DENEGADA. 1. Não
há que se falar em
ofensa aos princípios
do contraditório e ampla defesa,
se a sindicância
instaurada para apurar
falta grave foi acompanhada
pelo próprio reeducando e por seu advogado que apresentou defesa
escrita e não
alegou, na oportunidade,
qualquer nulidade no procedimento
disciplinar. 2. Ordem denegada, em
conformidade com o parecer ministerial. (HC
136.014/SP, Rel. Ministro
NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 23/02/2010, DJe
29/03/2010)
Todavia, penso ser importante
desenvolver uma reflexão mais detida, em harmonia
com a situação de
vulnerabilidade do encarcerado,
à luz do
devido processo legal.
O artigo 59 da LEP assegura o
direito à ampla defesa. É de se perceber que, in
casu, ela não foi
exercida a contento,
pois a oitiva
do reeducando foi acompanhada apenas
por agente penitenciária, o que não se
mostra possível. Já se pontuou
que se a autodefesa é renunciável, jamais poderia sê-lo
a defesa técnica. O Paciente foi ouvido sem a
intervenção do defensor.
É impensável admitir-se
que tal atuação seja
apta a sanar a imprestabilidade
da instrução írrita. Sobre o tema, eis a compreensão firmada por esta Corte:
HABEAS CORPUS.
PROCESSUAL PENAL. CRIME
DE ROUBO. NULIDADE.
OITIVA DA VÍTIMA.
DEPOIMENTO COLHIDO NA AUSÊNCIA DE
DEFENSOR CONSTITUÍDO OU
NOMEADO. VIOLAÇÃO AOS
PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO
E DA AMPLA DEFESA.
1. A nomeação de defensor dativo para a realização dos procedimentos judiciais, quando ausente em juízo o advogado
constituído, é ato obrigatório a teor do
disposto no art. 265, parágrafo único, do Código de Processo Penal (antes
da alteração realizada pela
Lei n.º 11.719/2008).
Precedentes desta Corte. 2.
Ordem concedida para
determinar a anulação
do processo-crime desde a realização da audiência de oitiva da
vítima e, de ofício, a expedição de alvará
de soltura em favor do ora
Paciente, caso se encontre
preso em decorrência
do presente feito,
em razão do
inegável excesso de
prazo resultante do fato de ser
necessária a renovação da instrução criminal. (HC 112.658/SP,
Rel. Ministra LAURITA
VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 04/11/2008, DJe 24/11/2008)
PROCESSUAL PENAL. DEFESA.
AUSÊNCIA. NULIDADE. 1 - Constatado que foram produzidos atos de instrução (prova oral da acusação)
sem que o
paciente estivesse assitido
por defensor dativo
ou constituído, a nulidade do
processo é flagrante,
conforme a dicção
da súmula 523-STF. 2 - Ordem
concedida. (HC 18.117/PE, Rel.
Ministro FERNANDO GONÇALVES,
SEXTA TURMA, julgado em
18/12/2001, DJ 18/02/2002 p. 514)
Veja-se que o Pretório Excelso,
numa belíssima demonstração de respeito aos
cânones constitucionais em
foco, chegou mesmo
a entender que,
diante da complexidade
do feito, mesmo a nomeação
de defensor dativo
não seria suficiente para satisfazer a exigência de defesa técnica, se esta,
exercida por defensor constituído, não teve ciência,
em prazo razoável, da
oitiva de testemunha mediante carta
precatória em outro estado:
HABEAS CORPUS . PROCESSUAL PENAL. CARTA PRECATÓRIA. AUSÊNCIA
DE INTIMAÇÃO PARA
OITIVA DE TESTEMUNHA
NO JUÍZO DEPRECADO. NULIDADE.
INEXISTÊNCIA. PECULIARIDADE DO CASO:
TEMPO INSUFICIENTE PARA
DESLOCAMENTO E ATUAÇÃO
DO ADVOGADO. DEFENSOR
AD DOC. IMPOSSIBILIDADE DE DEFESA EFICIENTE. 1. A
ausência de intimação para oitiva
de testemunha no
juízo deprecado não
consubstancia constrangimento
ilegal. Havendo ciência da
expedição da carta
precatória, como no
caso se deu, cabe
ao paciente ou a
seu defensor acompanhar
o andamento do feito
no juízo deprecado.
2. Peculiaridade do
caso. Efetiva violação do
princípio da ampla
defesa resultante da
impossibilidade de atuação da defesa técnica. O advogado do
paciente teve, a partir da ciência da
expedição da carta precatória, sete dias úteis para deslocar-se do Rio de Janeiro
a Belém do
Pará, o que,
na prática, inviabilizou
seu comparecimento. 3. Nomeação
de defensor dativo para atuar em momento
importante do processo, cuja inicial
contém quatrocentas páginas. Satisfação apenas formal
da exigência de
defesa técnica ante
a impossibilidade de atuação
eficiente. Ordem concedida. (HC 91501,
Relator(a): Min. EROS
GRAU, Segunda Turma,
julgado em 10/02/2009,
DJe-084 DIVULG 07-05-2009
PUBLIC 08-05-2009 EMENT VOL-02359-03
PP-00448)
Em remate,
consigne-se que é
inviável pensar em
judicialização da execução penal sem devido processo legal
e, este, por sua vez, desprovido de
respeito à ampla defesa. Esta que não
pode prescindir de sua vertente técnica.
Ante o exposto, concedo a ordem
para, cassando o acórdão atacado, anular a sindicância para apuração de falta grave cometida pelo
Paciente, em tese, ocorrida em 14.02.2010, bem como todos os efeitos dela
decorrentes.
É como voto.
Documento: 1139725 - Inteiro Teor
do Acórdão - Site certificado - DJe: 30/04/2012 Página 8 de 14 Superior Tribunal de Justiça
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