Reforma do Código Penal: ''Há vícios de origem''.
Entrevista especial com Jacinto Coutinho e Edward Rocha de Carvalho Anteprojeto de reforma do Código Penal adota, “infelizmente, o critério
da máxima punição, respondendo aos anseios de um Direito penal punitivo
expansivo”, apontam os advogados.
Confira a entrevista.
“Fez-se mais uma
compilação do que uma verdadeira reforma”, dizem os advogados Jacinto
Nelson de Miranda Coutinho e Edward Rocha de Carvalho, ao avaliarem
as propostas de reforma do
Código Penal brasileiro, que tramitam no
Senado e no Congresso Nacional. Para eles, a principal justificativa de
“objeção” ao anteprojeto desse Código “é justamente a falta dos fundamentos,
antes de tudo pelos princípios que sejam condizentes com uma democracia e,
especialmente, a falta de obediência ao postulado básico de que o Direito Penal
deve limitar e proteger o cidadão”.
Uma das justificativas para
alterar o Código vigente, editado em 1940, é adequá-lo à nova realidade da
sociedade brasileira, que se transformou gradualmente após a redemocratização. Entretanto, diante desse argumento, os advogados
são categóricos: “Veja-se: afirma-se que se está a cumprir a Constituição e
adequando o Código Penal - PC à ‘nova realidade’ (qual?), mas, ao mesmo
tempo, ignora-se
solenemente a importância de os crimes contra a humanidade estarem em primeiro
lugar
na parte especial”. Na entrevista a
seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, eles assinalam que o
discurso ideológico que orientou a redação do projeto de reforma do Código Penal não é
limitador, “mas ampliativo, punitivo; e isso não é nem um pouco recomendável
quando se pretenda a reforma de Códigos passados 20 anos da promulgação da
Constituição”. Na avaliação deles, a reforma
do Código Penal tem limites, e, se o novo texto for aprovado tal como está, a sociedade pagará “o
preço por isso”. “O
indicativo, nessas alturas, é a presidente da República chamar para si a
responsabilidade e começar tudo novamente”, assinalam.
Na entrevista a seguir, Coutinho e Carvalho analisam alguns
pontos da reforma, entre eles, o critério adotado para a penalização. Para eles, “adotou-se o critério
da máxima punição, respondendo aos anseios de um direito penal punitivo
expansivo”. E reiteram: “Perdeu-se oportunidade ímpar, por exemplo, de se
acabar com as penas mínimas, como em vários países europeus, possibilitando a
efetivação da cláusula constitucional da individualização da pena, a ser
realizada pelo juiz”.
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Paraná – UFPR. É especialista em Filosofia do Direito
pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR, mestre pela
Universidade Federal do Paraná – UFPR, e doutor pela Universidade de Roma La
Sapienza. Procurador do Estado do Paraná, também é presidente da Comissão da
Advocacia Criminal da OAB/PR e membro da Comissão de Juristas do Senado Federal
que elaborou o anteprojeto de reforma global do Código de Processo Penal, hoje
Projeto de Lei n. 156/2009-PLS.
Edward Rocha de Carvalho é advogado, mestre em Direito Penal pela Universidade Federal do Paraná
– UFPR e membro da Comissão da Advocacia Criminal da OAB/PR.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são os principais apontamentos em relação à reforma
penal em face do anteprojeto apresentado? Que aspectos do atual Código os
juristas consideram equivocados e por quê?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – O Direito penal tem um caráter de garantia do
cidadão, na medida em que ele limita o Poder punitivo do Estado. Explica-se:
dependesse do Estado e particularmente dos Governos (mormente os autoritários),
não haveria limites às penas e a história de abusos e arbitrariedades demonstra
isso. Logo, diante da existência de condutas que precisem ser punidas, é
necessário, desde logo, estabelecer quais e em que medida serão punidas. Daí o
caráter de limitação do Direito penal e a premissa da qual ele precisa ser pensado.
Um Direito penal
limitador, enfim, que garanta o cidadão contra abusos. Ele necessita atuar
sinteticamente: (1) só em caso de extrema necessidade, quando as outras
instâncias do Direito não funcionem (princípio da subsidiariedade); (2)
de forma a que não seja manipulado de acordo com interesses casuísticos
(princípio da legalidade); (3) só quando exista efetiva lesão a um bem jurídico que diga respeito a
pessoas humanas e não a interesses, que podem cambiar por formas
escusas (princípio da lesividade); (4) na medida da concreta
responsabilidade das pessoas que tenham causado danos e necessitem ser punidas
(princípio da culpabilidade).
É interessante notar que não
há, no anteprojeto – e isso seria recomendável – a fixação, desde logo e nos
primeiros artigos, dos princípios limitadores do Direito penal, que estão
dispersos ao longo dos primeiros artigos. A questão, sabe-se, é simbólica (pois
os princípios continuam lá), mas se teria um simbolismo forte com tal colocação
em primeiro lugar, demonstrando a que o Código veio. Eles, por evidente, dão conta dos fundamentos; e
dos fundamentos dos fundamentos. Ao que consta das próprias explicações,
utilizaram critérios pouco recomendáveis como, por exemplo, a necessidade de
que a parte geral do Código terminasse de forma a se manter o artigo 121
em seu lugar, deixando-se de lado a questão histórica de que os primeiros
artigos da parte especial são aqueles destinados aos preceitos dos crimes de
maior lesividade. Isso é relevante quando se tem em consideração os tratados
internacionais atuais e, especialmente, a questão colocada pelo Tribunal Penal
Internacional no que se refere aos crimes contra a humanidade. Veja-se: afirma-se que se está a
cumprir a Constituição e adequando o Código Penal à “nova realidade” (qual?),
mas, ao mesmo tempo, ignora-se solenemente a importância dos crimes contra a
humanidade estarem em primeiro lugar na parte especial.
Vício de origem
Por outro lado, dedica-se
o Código a duas vítimas de crimes violentos, demonstrando-se a priori a
ideologia que orientou a redação do Código: não limitador, mas ampliativo,
punitivo; e isso não é nem um pouco recomendável quando se pretenda a
reforma de Códigos passados 23 anos – quase 24 anos – da promulgação da
Constituição. Há, pois, vício de origem, do qual a linguagem não deixou escapar
a motivação.
Uma das principais questões que podem ser trazidas como objeção ao
anteprojeto de Código Penal é justamente a falta dos fundamentos, antes
de tudo pelos princípios que sejam condizentes com uma democracia e,
especialmente, a falta de obediência ao postulado básico de que o Direito penal
deve limitar e proteger o cidadão. Do que se percebe, fez-se mais uma compilação do que uma verdadeira
reforma (os modos da codificação é o título que apresenta o anteprojeto do novo
Código), escamoteando-se a deficiência técnica com a ingênua alegação de que o
escopo era a realidade e não as altas rodas teóricas e acadêmicas, tudo
como se fossem coisas que se pudesse separar impunemente. O cotejo
teoria-prática é antigo, tanto quanto
obsoleto; e hoje só usado por quem não sabe isso ou imagina que todos os outros
são parvos o que, em definitivo, não é o caso. O argumento, por isso, volta-se
contra quem o usa. Afinal, a deficiência dele começa por pressupor que um
teórico ou acadêmico ou teórico-acadêmico vive em outro mundo e não por aqui,
no meio dos alunos, fazendo greves, visitando instituições como penitenciárias,
foros, tribunais e outros, enfim, vivendo a vida como poucos.
Teoria X prática
Depois, conceitos como o de vida vivida e presença (entre tantos) só não
são conhecidos daqueles que vivem a prática dentro de quatro paredes; e foram
eles que ajudaram a colocar em crise as dicotomias, hoje altamente discutíveis,
dentre elas aquela que diz respeito a teoria/prática. Mas isso é coisa que se
sabia desde Marx e seu conceito de práxis. Assim, o argumento é tão
disparatado – quando o assunto é tão sério como fazer um novo CP – que
deve ser tomado como ingênuo. Ele, porém, é sintoma da qualidade levada a
efeito no anteprojeto. Veja-se.
Sabe-se, com certa tranquilidade, quem sabe Direito penal e seus
fundamentos, assim como os fundamentos dos fundamentos; e por isso seria
conveniente ouvir – levando-se a sério – as pessoas altamente especializadas
das Universidades, assim como aquelas que estudaram Direito penal a vida
inteira. Eles não só foram esquecidos (sente-se que propositadamente: e para
isso o tal argumento ajuda a concluir) como, agora, são acusados pelo que são,
o que é ofensivo.
Com isso não se quer dizer que
se não tinha gente (muito) boa na Comissão – e se tem boa consciência das
votações envolvidas, inclusive as razões por que alguns dela saíram –, muito
menos que ela não poderia ter feito o anteprojeto, mas, verdade seja dita, ela
fez o anteprojeto que fez ou podia fazer, o que se não pode negar. Por
evidente, seria difícil imaginar que dela saísse outra coisa que não aquilo que
saiu. Há, porém, que respeitar o esforço que se fez, embora do lugar do
respeito não se possa tirar a qualidade que um novo CP deva ter. Assim, era
preciso ter humildade e consciência das próprias limitações de modo a se pensar
no objetivo maior que era o esboço de novo CP para a nação brasileira, razão
por que os grandes conhecedores da matéria acabaram fora, como sabem todos. A
prática, então, imperou (mas qual prática?); e isso demonstra o caráter
que regeu a elaboração do anteprojeto de Código. É uma pena porque, desse modo,
não se deve aproveitar muito do que foi feito; e se for aproveitado, vai-se
pagar o preço por isso. O indicativo, nessas alturas, é a presidente da
República chamar para si a responsabilidade e começar tudo novamente.
Por outro lado, demonstrando o caráter pragmático e desvinculado dos
estudos sobre os temas básicos foi-se a pontos estruturais como, por exemplo,
com a questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Ora, ela é trazida
como necessária à proteção da sociedade quando, como não poderia deixar de ser,
sabe-se que o coletivo nada mais é, para esse efeito, que a reunião do
individual e, assim, este é que deve ser protegido daquele. Faz-se, no anteprojeto, nesse
ponto, exatamente o contrário do que o Direito penal deve ser: ao invés de se
questionar a necessidade e a própria existência de uma responsabilidade da
pessoa jurídica, parte-se do pressuposto de que ela existe, é necessária e
merece sanção.
IHU On-Line - Que critérios devem ser considerados para descrever as
condutas e as penas? Nesse sentido, quais são os acertos e equívocos da
proposta de reforma?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – Os
princípios descritos na primeira resposta: legalidade, lesividade,
culpabilidade, subsidiariedade, dentre outros. O anteprojeto se distanciou
deles e da nossa tradição, sempre fundada em países marcados pela luta pela democratização da
legislação
penal por conta de abusos que padeceram. Para fugir disso é preciso não ter memória ou não conhecer a razão por
que se chegou ao ponto que se chegou.
IHU On-Line - Como a questão da penalização está sendo abordada na
reforma do Código Penal? Que aspectos são considerados na discussão de aumentar
ou diminuir o tempo de uma pena?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – Adotou-se,
infelizmente, o critério da máxima punição,
respondendo aos anseios de um Direito penal punitivo expansivo. A questão da
lesão necessita ser, tecnicamente, levada em consideração e isso, ao que parece
(ao menos se diz expressamente em tal sentido), foi feito pela Comissão, que analisou a matéria referente à quantidade das
penas. Mas se o fez, não o fez bem, pelo que se pode perceber.
A falta de razoabilidade e a evidente ausência de lesão que justifiquem
a privação de liberdade nortearam a elaboração dos tipos. Veja-se, nesse sentido, o
questionamento feito à Procuradora de Justiça Luiza Eluf, uma professora
respeitada, realizado pela ONG Crueldade Nunca Mais em seu site. Lá, ela
afirmou expressamente que “estamos equiparando os animais aos seres humanos, o
que é muito positivo e educativo. Nós, que amamos os animais e a natureza,
alcançamos um grande progresso na Comissão de Reforma do Código Penal”. Pois
bem, é boa a intenção, mas se faz necessário discordar se o assunto é
lesividade: que a vida de uma minhoca valha o mesmo que a de uma criança parece
ser um absurdo completo. Aqui, veja-se bem, há um denominador comum para
os bens em questão e não se trata da opinião que se tem ou possa ter a
respeito. Nessas horas é que se percebe a falta de técnica; e se poderia
perguntar, com Agostinho Ramalho Marques Neto, “quem nos salva da
bondade dos bons?”.
De outra banda, perdeu-se
oportunidade ímpar, por exemplo, de se acabar com as penas mínimas, como em
vários países europeus, possibilitando a efetivação correta da cláusula
constitucional da individualização da pena, a ser realizada pelo juiz, de modo muito diverso daquele que se tem
hoje.
IHU On-Line - As reformas do Código Penal consideram a atual situação do
sistema carcerário brasileiro? Diante do esgotamento e da ineficiência desse
sistema, que aspectos a reforma deveria considerar?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – Ao que parece, tal questão está pressuposta no
anteprojeto e, claro, não deveria estar. Levar em consideração a situação do
sistema carcerário implicaria montar uma estrutura que diminuísse a quantidade
de penas privativas de liberdade, direção para a qual aponta a melhor doutrina,
por exemplo a alemã. Com
penas menores você tem que trabalhar o apenado desde outro patamar, criando
nele expectativas de um progresso voltado para a reinserção na sociedade.
Presídio, por sinal, não é depósito de gente que, lá, não deixa de pensar. É
preciso, portanto, entender a situação pessoal dos presos e não imaginar que
algo de positivo se vai conseguir com a mera “docilização” deles, o que já se
mostrou infrutífero. Assim, respeitar o preso como cidadão, com sua
singularidade, é um começo, mesmo porque a experiência brasileira já deveria
ter ensinado a todos que ele, de um modo geral, volta ao convívio da sociedade
e, como está, tende à reincidência, com enorme prejuízo à sociedade que – claro
– sofre e até certo ponto com razão se revolta. Mas é um ódio voltado contra o
efeito; e não contra a causa. Por isso a questão é, antes de tudo, um problema
de inteligência: o que se quer com a pena privativa de liberdade? Tal
problemática, verdade seja dita, é mais diretamente ligada à execução penal,
como sabem todos. Mas não deveria ser desconsiderada – e nem pressuposta – na
elaboração de um anteprojeto de CP, sob pena de se fazer o que se fez.
Falência do sistema
Ao que parece, desconsiderou-se o problema, como se não existisse,
embora previsível há muito tempo, por conta de um discurso que se encontra fora
do seu devido espaço e tempo, ou seja, aquele de que o discurso da chamada “ressocialização” não
tem aplicação para nós justo pela falência do sistema. Tal discurso foi
importante há quarenta ou cinquenta anos na Europa; e ainda assim por conta da
questão ideológica e em alguns países e regiões. Aqui, porém, seria possível
falar em falência de algo que nunca existiu, ou seja, o verdadeiro esforço no
sentido da ressocialização? Enfim, decreta-se a falência de uma empresa que
sequer teve vida, o que beira o absurdo. Mas quando se acredita em tal discurso
– o da falência –, acaba-se por produzir uma legislação penal tão só
repressivista, embora visivelmente equivocada, para dizer o mínimo. Para
resolver o problema bastaria ler alguns alemães, holandeses e canadenses mais
atuais; mas não se pode dizer quantos são os que fazem isso, por vários motivos.
IHU On-Line - Como a discussão acerca da criminalização da pobreza e a
relação entre pobreza e criminalidade aparecem nas propostas de reforma do
Código Penal?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – As pesquisas criminológicas indicam que uma
sociedade desigual e consumista tende a canalizar comportamentos desviantes
para a criminalidade. A
relação não é imediata e objetiva, mas há uma vinculação evidente, em boa parte dos crimes,
entre pobreza e criminalidade, especialmente numa sociedade
estamental, polarizada e patrimonialista. É preciso, porém, entender a situação de cada um, até para se poder
responder de forma mais coerente. Quando o espírito é repressivista isso fica
mais difícil porque a tendência é ignorar as diferenças.
IHU On-Line - Como a questão do terrorismo é abordada na proposta de
reforma do Código Penal? O que justifica as novas interpretações nesse aspecto?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – O
presidente da Comissão que elaborou o anteprojeto, a quem se deve respeitar,
deixou claro que era contrário à criminalização do terrorismo – inexistente no
Brasil e, logo, de tipificação comprovadamente desnecessária – até o anúncio da
Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 no Brasil,
cf. entrevista no site Consultor Jurídico, em 6-5-2012: “(...) sempre fui
contra a tipificação porque me parecia uma pressão desmedida dos Estados
Unidos. Mas nesse momento
em que o Brasil terá grandes eventos como Olimpíadas, Copa das Confederações,
Copa do Mundo, em que pelo menos três países que sofreram na carne a barbárie
do terrorismo estarão presentes, como Estados Unidos, Espanha e Reino Unido,
achei razoável discutir a tipificação.” Parece surreal, mas é verdadeiro e assumido: os critérios
para a tipificação são eventos esportivos, ou seja, o velho panem et circenses
dos romanos. Já que a inspiração é americana deveria ser bread, circus and
jail, oras. Só que não é assim que se constrói uma adequada tipificação. Tipificação
A nova “interpretação”, na
realidade, é uma adoção ao que os critérios estadunidenses de punição
recomendam, como, por exemplo, da mesma forma que se está fazendo acriticamente
em relação à lavagem de dinheiro. O critério, enfim, foi atender a
interesses alheios. Sabem todos, porém, que para ter eficiência (como tanto
gostam eles, a ponto de a terem como princípio reitor) deveriam acabar com os
paraísos fiscais que comandam e servem, por evidente, aos mesmos
interesses. Isso não serve, contudo, àqueles interesses, porque seria
preciso uma nova Economia mundial, com maior redistribuição de renda para quem
produz, e não simplesmente especula.
A tipificação, então, do ponto
de vista técnico, é sofrível, pois o preceito primário diz respeito a “causar
terror na população” mediante condutas que, em si, são sim lesivas. A questão
não está nos parágrafos, que descrevem a lesividade, mas no ato de “causar
terror”, o que remonta ao velho conceito de tipos abertos, rejeitados por toda
e qualquer doutrina comprometida com a Constituição e a democracia. Veja-se o
problema de uma forma concreta: destruir um bem público pode tanto ser
terrorismo (art. 239, § 3º, pena de 8 a 15 anos) quanto dano qualificado (art.
163, § 1º, III, pena de 6 meses a 3 anos), tudo a depender do “terror” causado.
O que seria isso? Seria preciso um laudo psicológico coletivo para o
determinar? Parece evidente a
inconstitucionalidade e a desproporcionalidade de tal tipificação, sem
desconsiderar a real motivação para o ato.
IHU On-Line - Como temas considerados tabus na sociedade brasileira,
tais como aborto, homofobia, bullying e racismo, aparecem na reforma do Código
Penal?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – Os
crimes de racismo e homofobia vêm no artigo 472, com a previsão de condutas que
sejam originadas “por motivo de discriminação ou preconceito de gênero, raça,
cor, etnia, identidade ou orientação sexual, religião, procedência regional ou
nacional ou por outro motivo assemelhado, indicativo de ódio ou intolerância”.
Por incrível que pareça, não há previsão de pena! Isso deixa evidente a
falta de critérios técnicos na elaboração de tipos.
O bullying é chamado de
intimidação vexatória e vem previsto no art. 148, com pena de 1 a 4 anos.
Também não está bem, pelo menos do que se espera de um tipo penal, começando
pela clareza. Em um sistema processual adequado
democraticamente seria difícil comprovar a duplicidade que se exige do especial
fim de agir.
Em relação ao aborto, há uma
ampliação do rol permissivo, o que pode ser um avanço notável e deve ser
elogiado, embora há quem considere tímida a proposta. Ele é permitido quando (i) houver risco à vida ou à saúde da
gestante, (ii) em caso de violação da dignidade sexual ou emprego não
consentido de reprodução assistida; (iii) comprovada a anencefalia ou
padecer o feto de graves e incuráveis anomalias, que inviabilizem a vida
extrauterina; (iv) até a décima segunda semana, desde que um médico ou
psicólogo constatem que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar
com a maternidade. O
problema, nesse último caso, é transferir a responsabilidade aos médicos ou
psicólogos sem que se tenha indagado a eles se estão de acordo; ou mesmo se têm
condições para tanto, o que se há de duvidar. É previsível, assim, que se acabe
na Justiça. Vê-se, então, também aqui que se não andou bem tecnicamente.
IHU On-Line - Como o Código Penal pretende resolver questões de crimes
enquadrados como enriquecimento ilícito de servidores e autoridades públicas,
desvio de finalidade ou função, punição e responsabilização?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – Aqui
se tem um dos pontos mais criticáveis do Anteprojeto da Comissão, e um dos mais
elogiados por alguns de seus membros, o que demonstra um descompasso entre
teoria e prática. Nas teorias – todas! –, prevalece o princípio constitucional
de que o ônus da prova incumbe a quem acusar. Em um dos crimes específicos, de
enriquecimento ilícito (artigo 277), prevê-se a hipótese de se punir uma pessoa
que não consiga provar as razões da formação de seu patrimônio, o que inverte o
ônus da prova e é inadmissível num Estado democrático de Direito. Sobre tal
matéria, ademais, já se tem controle, a começar pelo Imposto sobre a Renda e
outros. O que resta saber é se dele (o controle) se tem o resultado que
se precisa. Como a resposta é negativa (eis um dos problemas do chamado Estado
mínimo!) e ao invés de se trabalhar para que isso se altere, vai-se à solução
mais fácil, criminalizando e invertendo o ônus da prova. É por isso que se
quer, retoricamente, acabar com princípios e regras constitucionais que foram
conquistas da civilização e dos quais não se pode abrir mão. Assim, como sabem
todos – ou deveriam saber –, não é o problema simples de “abrir a conta
bancária” ou “escutar ilegalmente as conversas telefônicas” ou “interceptar
ilegalmente os dados telemáticos” ou... O problema sério é violar os princípios
que protegem os cidadãos e as regras que lhes garantem os direitos e funcionam
como garantias. Por evidente que para quem não tem dinheiro em conta bancária
ou mesmo telefone (e assim por diante) para ser violado, parece fácil admitir a
violação. Mas para esses, de regra menos afortunados, em geral se violam outros
direitos e garantias, a começar pela incolumidade física e os domicílios, não
raro situados nas favelas.
Eis uns dos motivos pelos quais não se consegue acabar com a tortura,
essa vergonha do gênero humano. Nesses casos, de regra os mais afortunados –
movidos pelo mesmo discurso tanto verdadeiro como manipulável de que “o inferno
são os outros”, como queria Sartre –, da sua parte, parecem admitir, com
facilidade, as violações seja dos domicílios, seja da incolumidade física, pela
tortura. Afinal, são eles – os outros – os violados. Assim, seja de um lado,
seja do outro, perdem todos como, várias vezes, ensinou a história. E o que se
não respeita – não é difícil notar – é a diferença. Em tempos de prevalência da
epistemologia (se é que se pode falar de uma epistemologia para isso)
neoliberal, a ordem posta, mesmo a constitucional, por não ser uma ordem
natural espontânea (como queria Hayek) e sim construída, é injusta. O perigo
verdadeiro para a democracia, portanto – mormente a brasileira, ainda muito
frágil – é o modo de pensar dessa gente. E o Brasil está repleto dela; muitos,
dentre eles, dando as ordens, não raro para serem cumpridas por quem não
deveria cumprir, pelo poder que têm. Em uma democracia representativa, os que
detêm o poder do povo têm o dever de resistir e não se enganar pelo canto da
sereia. Os neoliberais,
porém, sabiam disso e, por tal razão, foram fazer escola para ensinar a
cantar... Enfim, se a matéria do enriquecimento ilícito de servidores e
autoridades tivesse verdadeiramente dignidade penal já teria – há muito – sido
incluída no CP. De qualquer forma, se agora ela tivesse tal dignidade
(embora seja de duvidar), não há qualquer espaço para não se pensar que a
tipificação haveria de ser precisa, clara e taxativa, por vários motivos que
dizem com o que há de mais sagrado no DP mas também porque o cidadão não pode
estar exposto à humilhação, ao enxovalhamento para, ao depois, simplesmente se
dizer que é inocente. Em uma hipótese assim, o processo – e já a
investigação preliminar dele –, se ganhar os meios de comunicação, é uma pena
antecipada; e perpétua. Basta que se fale mal nas redes sociais. Está-se
invertendo os fundamentos; para alguns se consomem os valores; e perigosamente.
É um DP de amostragem: se o cidadão não estiver com sorte arrisca a existência
em um detalhe. DP e DPP não se prestam – e não se podem prestar – para tal fim,
justo porque se estaria diante do último bastião da democracia. Daí para frente
é tão só barbárie; aquela que escolhe, de uma forma ou outra, a todos.
IHU On-Line - Outro tema apresentado na reforma do Código Penal é o da
responsabilidade penal da pessoa jurídica. De que forma a reforma pretende
tratar a matéria?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – O
tema é controvertido. Contra quase todos os estudos técnicos de Direito penal,
incluiu-se a responsabilidade penal da pessoa jurídica no Anteprojeto do C tão
só porque serviria à sociedade e à proteção das pessoas,
partindo-se do pressuposto de que é um problema “há muito, identificado pelos
estudiosos”. Qual? Quais? Sabe-se bem que a Constituição prevê a hipótese – de
todo tecnicamente inadequada – de tal responsabilidade, mas isso ainda não é
sequer pacificado a ponto de ser incluído em um novo Código. Logo, no Brasil (todo discurso alienígena, na sua
necessária extensão, não se amolda adequadamente aqui), a matéria mereceria
seguir em discussão, pelo menos até que se tivesse o devido amadurecimento.
IHU On-Line - O projeto de lei do Código Penal deve dialogar com os
diversos atores da sociedade civil, como as igrejas, por exemplo,
principalmente em relação a temas relacionados a costumes e questões culturais?
Jacinto Coutinho e Edward de
Carvalho –
Um projeto de lei de tal envergadura deve, mais que dialogar (por seus atores,
por óbvio) com a sociedade civil, ser a expressão dessa mesma sociedade. Isso,
porém, é uma tarefa complicada e difícil, para não dizer impossível. Afinal, é
a “expressão da sociedade civil” ou do que dizem que ela é? Tal
expressão é dela ou ideologicamente imposta a ela pelos detentores do poder, a
começar pelos veículos que se dispõe, dentre eles e mais importante os “meios
de comunicação”. Logo, quando tal impossibilidade fala mais alto, o padrão que
a modernidade legou foi aquele da Constituição da República - CR e, por
ela, se não se tem a expressão referida – no caso concreto – não se deixa de
ter os postulados mínimos pelos quais cada um deve se pautar, começando pelo
Estado e, nele, pelos poderes constituídos, ou seja, Legislativo, Executivo e
Judiciário. Assim, não se pode legislar da forma que der na cabeça, ao
bel-prazer, ainda que em nome da precitada expressão que, em verdade, vai
enquadrada também. Não fosse assim já teriam quebrado as cláusulas pétreas da CR,
por exemplo, para incluir a pena de morte. A questão, portanto, é mais
sofisticada do que se quer fazer parecer. Por trás de tal discurso há sempre
uma ideologia, não raro repleta de moralismos e interesses inconfessáveis. FONTE http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/512777-reforma-do-codigo-penal-ha-vicios-de-origem-entrevista-especial-com-jacinto-coutinho-e-edward-rocha-de-carvalho
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