No âmbito do Senado Federal, pelo Requerimento nº
756/2011, do Senador Pedro
Taques, foi instituída uma Comissão Geral para elaborar Anteprojeto de
Reforma do Código Penal. Presidiu-a o Ministro Gilson Dipp e a tarefa foi
subdividida em três grupos: Parte Geral, Parte Especial e legislação
extravagante.
A primeira reunião de trabalho
ocorreu no dia da posse (18 de outubro de 2011) seguindo-se as demais a partir
de 4 de novembro de 2011. O texto final foi encaminhado pelo Relator-Geral,
Procurador Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, em 18 de junho de 2012, ao Presidente do Congresso
Nacional José Sarney.
E no dia 10 de julho,
a Senadora Ana Amélia (PP-RS), na presidência da sessão do Senado Federal, fez
a seguinte comunicação: “A Comissão de Juristas, criada nos termos do Requerimento nº 756, de 2011,
encaminhou como conclusão dos trabalhos o anteprojeto de Código Penal que foi
apresentado como Projeto
de Lei do Senado nº 236, de 2012, pelo Senador José Sarney, Presidente
do Senado Federal, que reforma o Código Penal Brasileiro, com as ressalvas
expostas na Justificativa da proposição”. (Diário do Senado Federal, p. 33259).[1] Consta, em seguida, a leitura do
projeto que tem 543 artigos (p. 33260 e s.). Nenhuma alteração se processou
durante a passagem de um documento legislativo para o outro, mantendo-se,
inclusive, o prazo da vacatio legis em 90 (noventa dias) (art. 542).
Com exceção de algumas audiências
públicas, durante o período de redação parcial de dispositivos, pautadas pelo
interesse de grupos de pressão e promovidas pelo serviço de apoio e assessoria
de imprensa do Senado Federal, o anteprojeto não teve o seu texto final e a
concepção geral da reforma submetidos à análise da sociedade e em especial da
comunidade científica especializada. Magistrados, membros do Ministério
Público, advogados, delegados de polícia, professores em Direito Penal e
ciências afins e operadores jurídicos de um modo geral não tiveram oportunidade
e tempo para opinar sobre uma proposta de crimes e penas dirigida para milhões de
brasileiros. Cada proposição oriunda de um dos grupos de trabalho, mas ainda
não amadurecida, era amplamente divulgada pelo site do Senado Federal e pelos
meios de comunicação. Em lugar da troca de ideias, da meditação e da reflexão
silenciosa de temas do maior relevo humano, social e técnico-jurídico, optou-se
pelos caminhos do açodamento e da busca desenfreada de suposta aprovação da
opinião pública, sujeita aos meios de comunicação. A intolerável pressa se
traduziu também na urgência da tramitação imposta pelo autor do projeto que se
vale de sua condição da presidente da Casa Legislativa. É o que se verifica
pelos exíguos prazos para o estudo de matéria de extraordinária repercussão
nacional.
Com efeito, na Sessão
Deliberativa de 8 de agosto, a presidência fixou o seguinte calendário de
tramitação: Apresentação de Emendas – 09/08 a 05/09/2012 (vinte dias úteis);
Relatórios parciais – 06 a 20/09/2012 (dez dias úteis); Relatório do
Relator-Geral – 21 a 27/09/2012 (cinco dias úteis); Parecer final da Comissão –
28/09 a 04/10/2012 (cinco dias úteis)
Na história legislativa brasileira,
desde o tempo do Império, com os projetos Vasconcellos e Clemente
Pereira (04 e 16 de maio
de 1827) encaminhados a uma Comissão da Câmara e depois para uma Comissão Mista
das duas Cassas Legislativas até a aprovação do projeto definitivo (22.10.1830)
e a sanção do Código Criminal pelo Imperador D.
Pedro I, em 16 de dezembro de 1830, passando pelos regimes
autoritários do Estado Novo e dos governos militares, nenhum projeto de reforma do Código Penal teve
tramitação com a urgência-urgentíssima igual a do Projeto Sarney.
Realmente, o Projeto Alcântara Machado (1938) foi submetido a uma “demorada
revisão“, como acentua a Exposição de Motivos – assinada pelo Ministro Francisco Campos –, e da qual participaram Vieira Braga, Nelson Hungria,Narcélio
de Queiroz e Roberto Lyra. O texto
revisto foi editado em 07 de dezembro de 1940 e com vigência a partir de
janeiro de 1942.
O anteprojeto Hungria (1961), publicado em 1963 pelo
Ministério da Justiça para receber sugestões, proporcionou amplos debates nas
academias e associações profissionais, além das discussões por comissões de
revisão até o advento do Dec-lei nº 1004, de 21 de outubro de 1969, alterado
somente quatro anos após pela Lei nº 6.016, de 31 de dezembro de 1973. O CP
1969/1973 foi revogado pela Lei nº 6.578, de 11 de novembro de 1978.
Em 6 de setembro de 1983, o
Ministro Ibrahim
Abi-Ackel instituiu uma
Comissão de Juristas para elaborar um Anteprojeto da Parte Especial do Código
Penal. O texto acabado foi entregue pelo coordenador, Professor Luiz Vicente
Cernicchiaro, em julho de 1984 e publicado para receber sugestões.
As leis nº 7.209 e 7.210, de 11
de julho de 1984 (nova Parte Geral e Lei de Execução Penal), somente alcançaram
esse estágio após análise de comissões revisoras e ampla discussão dos
anteprojetos no I Congresso Nacional de Política Criminal e Penitenciária,
realizado em Brasília (27/30 de setembro de 1981), que recebeu mais de 3.000
participantes. Somente em 29 de junho de 1983, e agora sob a forma de projetos
de lei, os textos foram encaminhados ao Congresso Nacional por intermédio da
chefia do Gabinete Civil em 29 de junho de 1983 (avisos nºs 242 e 243 –SUPAR) e
aprovados em sessão de 20 de junho de 1984 (DCN, seção II, p. 2105/2120). O período de vacância foi fixado
em 6 (seis) meses, o dobro do prazo do Projeto
Sarney.
Outro movimento legiferante foi
desencadeado em 10 de dezembro de 1992, quando o Ministro da Justiça, Maurício Corrêa,
instituiu uma Comissão de Juristas, sob a presidência do Ministro Evandro Lins e Silva,
para elaborar Anteprojeto da Parte Especial do Código Penal. Na impossibilidade
de conclusão dos trabalhos no prazo assinado de 180 dias, todo o material até
então produzido (dispositivos, documentos e informações) foi resumido em um
Esboço que subsidiou o Anteprojeto de 1999, de notável repercussão
pública.
Mais recentemente, os trabalhos
iniciados sob a gestão do Ministro da Justiça José
Carlos Dias, e concluídos ao tempo do Ministro da Justiça José Gregori,
produziram: a) Anteprojeto modificativo do sistema de
penas da Parte Geral (2000); b) Projeto de Lei da Parte Geral 3.473,
de 2000 (Parte Geral – alteração do sistema de penas); c) Emenda substitutiva
(2001) ao Projeto de Lei 3.473, de 2000. E não sofreram o vicioso processo de
açodamento.
Quanto ao mérito, o Projeto
Sarney desnuda a
ausência de um método científico para o simples traslado de centenas de normas
penais das leis extravagantes para a Parte Especial do Código Penal, resultando
em um aglomerado de disposições sistematicamente desordenadas, muitas vezes com
a formulação dos tipos penais piorada. Entre seus muitos vícios está a falta de
proporcionalidade entre crimes e penas. Basta o seguinte exemplo: o art. 394 prevê o crime de deixar de prestar
assistência ou socorro, quando possível fazê-lo, sem risco pessoal, a qualquer animal que esteja em grave e iminente perigo,
ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública, sancionado com a
prisão de um a quatro ANOS. E a omissão de socorro à criança
abandonada ou extraviada ou à pessoa inválida ou ferida (...) é punida com a
prisão de um a seis MESES ou multa.
Em síntese: para uma criança abandonada ou uma pessoa ferida a pena
mínima é de um mês ou multa e em relação a qualquer animal é de um ano, ou seja, doze vezes superior. Tais absurdos são comuns
ao longo do Projeto
Sarney. Nenhuma crítica acerca de leis abusivas e injustas foi
considerada na operação de transporte. Em relação à Parte Geral, é preocupante o uso reiterado de conceitos
e termos jurídicos com a maior impropriedade. Por outro lado, chega-se a
transcrever textos de doutrina em normas da Parte Geral, como se verifica pelo
parágrafo único do art. 14, que trata da relação de causalidade física. O uso
de uma linguagem doutrinária pouco afeita à compreensão e segurança jurídicas,
aliada à falta de técnica legislativa, compõe essa mistura deplorável de
conceitos naturalístico e normativo. Este é um dos muitos exemplos de erros e imprecisões
acerca da teoria do delito. Soluções adotadas no campo das penas e das medidas
de segurança levam a graves consequencias. Basta lembrar, entre outras, no Projeto Sarney, a
supressão do livramento condicional, historicamente consagrado em inúmeras
legislações estrangeiras como última etapa do sistema penitenciário progressivo,
e que desde o Código Penal de 1890 se incorporou na teoria e na prática da
execução penal. Trata-se de histórico instituto cuja concepção é atribuída ao
juiz francês Beneville,
com o nome de liberação preparatória (1846-1847), e uma extraordinária
conquista de esperança do preso condenado, além de um eficiente instrumento de
disciplina penitenciária. Na
mesma linha de carência flagrante de sistematização, o Projeto ignora que as
modificações no elenco das penas devem, obrigatoriamente, se alterar também a
Lei de Execução Penal, que estão absolutamente imbricadas.
Com o talento e a humildade dos
grandes espíritos, o imortal Augusto Teixeira de Freitas (1816-1833), um dos
maiores jurisconsultos brasileiros, foi incumbido pelo Decreto de 11 de janeiro
de 1859 de elaborar um projeto de Código Civil, monumental obra a qual
denominou de simples Esboço. E, antes de apresentá-la ao Governo Imperial,
escreveu, em nota dirigida ao público (25.08.1860), para “expor-me à censura de
todos, facilitar minha própria censura, (...). “De tudo careço, a crítica deve
ser severa, ou em artigos de fôlhas diárias, ou em memórias, ou em
correspondência epistolar; e pôsto que não me seja possível avaliar desde logo
os esclarecimentos que espero, terei o cuidado de formar um preciso arquivo; e,
concluída a empresa, responderei então às censuras que não me pareceram
razoáveis””.[2]
Por todas as razões apontadas,
torna-se imperioso o imediato sobrestamento do projeto nº 236/2012 para a mais
ampla consulta à Nação, à comunidade científica e aos operadores jurídicos.
Para assinar o
manifesto:
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