A anatomia da destrutividade humana
POR José Maria Martins
“A anatomia da
destrutividade humana”, o imenso e rigoroso trabalho de Fromm (1975), um de
seus últimos, apesar do inegável valor, não recebeu a devida atenção nos meios
acadêmicos, talvez por ter sido publicado num momento em que a perspectiva
culturalista estava deixando de ser a moda entre uma intelectualidade mais preocupada em parecer informada
sobre a última novidade que vinha da França do que no valor intrínseco das
obras.
A tese de Freud –
também defendida por Lorenz, Desmond Morris e outros instintivistas – que Fromm
questiona, pode ser descrita assim: a agressividade do homem, expressa no seu
comportamento tal como se registra na guerra, no crime, nos conflitos pessoais
e em todas as espécies de comportamentos destrutivos e sádicos, é devida a um
instinto filogeneticamente programado, inato, que procura descarga e aguarda a
ocasião propícia para exprimir-se.
Essa tese chegou a encontrar larga aceitação, não
devido à validade dos argumentos que a fundamentam, mas por ela facilmente
poder transformar-se numa ideologia que ajuda a atenuar o medo daquilo que pode
acontecer e a racionalizar o sentimento de impotência das pessoas. Fromm
pergunta:
Que poderia ser mais satisfatório às pessoas que
mostram-se amedrontadas e sentem-se impotentes para mudar o rumo das coisas que
conduzem à destruição do que uma teoria que nos assegura que a violência
origina-se de nossa natureza animal, de uma ingovernável impulsão para a
agressão, e que o melhor que temos a fazer, como afirma Lorenz, é compreender a
lei da evolução que é o elemento responsável pela potência dessa impulsão?
(1975, p.22).
Um outro motivo para a preferência por uma solução
instintivista encontra-se no fato de que um estudo sério das causas da
destrutividade exige o exame crítico das premissas básicas do nosso sistema
social, expondo seus aspectos ideológicos e irracionais, e violando tabus que
se encontram por trás de palavras solenizadas como “honra”, “defesa”,
“patriotismo”, etc. Nada menos que uma análise em profundidade do nosso sistema
social é necessária para desvelar os motivos da ampliação da destrutividade e
para se encontrar os caminhos e os meios para reduzi-la. A teoria instintivista,
Fromm suspeita, pode ser utilizada como uma justificativa para se evitar a
árdua tarefa de levar a cabo uma análise dessa natureza.
O registro dos dados
empíricos torna insustentável a tese instintivista. A paleontologia, a
antropologia e a história oferecem ampla comprovação contra ela. Fromm lista
alguns desses argumentos:
1. os grupos humanos
diferem tão fundamentalmente quanto ao respectivo grau de destrutividade que os
fatos não podem explicar-se pela admissão de que a destrutividade e a crueldade
seriam inatas;
2. os vários graus de
destrutividade apresentam uma correlação consistente com outros fatores
psíquicos e com diferenças nas estruturas sociais, e
3.
o
grau de destrutividade aumenta com a intensificação do desenvolvimento da civilização.
Se
fosse dotado apenas da agressividade biológica que partilha com seus ancestrais
animais, o homem seria um ser relativamente pacífico. Contudo, o homem é o
único primata que tortura e elimina membros de sua própria espécie sem nenhum
motivo premente biológico ou econômico, e muitas vezes faz isso com prazer. É
essa agressão maligna e não programada filogeneticamente que constitui um
problema e um perigo reais para nossa existência como espécie.
Fromm faz uma nítida distinção entre
paixões naturais e paixões do caráter. Essas últimas têm uma origem social, são
resultantes das influências sociais. Talvez fosse mais adequado dizer que as
paixões do caráter resultam de uma atuação dos fatores sociais sobre os
naturais, já que não faz sentido afirmar que a cultura cria uma paixão a partir
do nada.
Ele
analisou trinta culturas do ponto de vista agressividade versus pacificidade,
análise que lhe permitiu discriminar três sistemas sociais diferentes,
claramente delineados (A, B e C).
Se a tese instintivista estivesse correta, a destrutividade e a crueldade
seriam necessariamente encontradas em todas as sociedades ou, se não, pelo
menos os sinais indicativos de que essas manifestações existiam mas
encontravam-se reprimidas. A existência de apenas uma sociedade em que a
destrutividade não existisse, nem manifestada nem reprimida, já seria
suficiente para contestar a tese de que ela é inata. Fromm encontrou oito que
se situavam no sistema A (sociedades não destrutivas e sim afirmativas da
vida), catorze no B (sociedades agressivas, mas não destrutivas) e seis no C
(sociedades destrutivas.) As duas restantes, incluindo os Hopi, apresentaram
dificuldades em serem claramente situadas num ou noutro sistema. As várias
sociedades foram descritas por ele da seguinte forma:
Sistema A: Sociedades Afirmativas da
Vida
Nesse
sistema, os ideais, costumes e instituições servem à preservação e ao
desenvolvimento da vida, sob todas as suas formas. Há um mínimo de hostilidade,
de violência ou de crueldade entre as pessoas, nenhuma punição drástica, quase
nenhum crime. A instituição da guerra está ausente ou desempenha um papel
completamente insignificante. As crianças são tratadas com doçura, não existe
nenhuma pena corporal severa; as mulheres, em geral, encontram-se em pé de
igualdade com os homens ou, pelo menos não são exploradas e humilhadas; há uma
atitude geralmente permissiva e afirmativa com relação ao sexo. Registra-se pouca inveja, notam-se pouca cobiça,
voracidade e desejo de explorar o próximo. Há também diminuta competição e
individualismo e uma ampla faixa de cooperação; a propriedade pessoal recai
apenas nas coisas de uso imediato. Vê-se uma atitude geral de lealdade e
confiança, não apenas uns nos outros, mas também na natureza. Há uma prevalência
geral de bom humor e uma ausência relativa de estados de ânimo depressivos. São
exemplos de sociedades que se classificam sob essa categoria afirmativa de vida
os Esquimós Polares, os Zuñis, os Arapesh da Montanhas, os Semangs e os Aranda.
Sistema B: Sociedades Agressivas
Não-Destrutivas
Esse sistema tem em
comum com o primeiro o fato básico de não ser destrutivo, mas difere dele em
que a agressividade e a guerra, embora não centrais, são ocorrências normais;
também, a competição, a hierarquia e o individualismo encontram-se presentes em
seu meio. Essas sociedades não estão, de maneira alguma, impregnadas pela
crueldade ou por uma exagerada carga de suspeições, mas não apresentam aquela
espécie de docilidade e de lealdade características das sociedades que
pertencem ao sistema A. O sistema B poderia, talvez, ser mais bem caracterizado
afirmando-se que está imbuído de um espírito de agressividade masculina, de
individualismo, do desejo de possuir as coisas e de realizar determinadas
tarefas, ainda que não de forma destrutiva. Exemplos: os Esquimós da
Groenlândia, os Ojibwas, os Samoanos, os Maoris, os Tasmanianos, os Incas.
Sistema C: Sociedades Destrutivas
Essas são bem diversas,
caracterizadas por muita violência interpessoal, por destrutividade, por
agressão e por crueldade – tanto no interior das sociedades como externamente,
contra terceiros – pelo prazer de praticar a guerra, pela perversidade e pela
traição. Toda a atmosfera da vida está perpassada de hostilidade, de tensão e
de medo. Habitualmente, vê-se um alto índice de competição, dá-se grande
importância à propriedade privada (se não em coisas materiais, pelo menos em
símbolos), registram-se rígidas hierarquias e um teor considerável de práticas
de guerra. Exemplos são os Dobuanos, os Ganda, os Witotos, os Haidas, os
Astecas.
O contraste fundamental é entre os
sistemas A e B, por um lado, ambos afirmativos de vida, e o sistema C, que é
basicamente cruel ou destrutivo, ou seja, sádico ou necrófilo. Sem dúvida, muitas
tribos de índios brasileiros do Xingu seriam classificadas também no sistema A
ou no B. Tive a oportunidade de ouvir recentemente um dos irmãos Villas-Boas
num congresso de psicologia em Manaus. Ele afirmava que, depois de décadas em
contato com eles, nunca tinha visto um índio bater numa criança.
Ao terminar a descrição detalhada de
uma das sociedades do sistema A, Fromm lembra a conhecida carta de Freud a
Einstein sobre a guerra, em que ele diz ter ouvido sobre a existência de
sociedades primitivas pacíficas, cuja vida é tranqüila, sem coerção nem
agressão. Freud escreve que mal podia acreditar nisso e que gostaria de ter
mais informações sobre esses seres afortunados. Fromm comenta: “Não sei qual
teria sido a atitude de Freud se tivesse sabido mais coisas sobre esses ‘seres
afortunados’. Parece que nunca fez uma tentativa mais séria para informar-se a
respeito deles” (1975, p.273).
O que Freud via como manifestações de
uma pulsão de morte inata são as manifestações deterioradas da raiva e de
outras emoções que sofreram interferências. A necessidade de se decidir com o
máximo de rigor científico a questão da existência ou não de uma pulsão de
morte inata é de importância crucial não só para a educação como para a prática
das terapias psicológicas. Parece óbvio que qualquer educador ou terapeuta,
psicanalista ou não, que aceite a tese da existência da pulsão de morte irá,
implícita ou explicitamente, opor-se à idéia de que a experiência plena das
emoções (em si e nos seus alunos ou pacientes) seja terapêutica e emancipadora,
pois nesse caso estaria liberando também a destrutividade, a crueldade, etc.. A
ênfase, então, no controle racional, na elaboração e reconstrução verbal,
atividades predominantemente cognitivas, será nada mais que uma conseqüência
lógica da premissa de que parte. Entretanto, se tal pulsão não existe, como
sugerem os dados antropológicos e clínicos, a rigidez disciplinar e a ênfase
intelectualista nos elementos verbais implicam o risco de se estar mantendo e
acentuando uma forma de castração emocional.
Referências:
FROMM, Erich. A Anatomia da
destrutividade Humana. Rio: Zahar, 1975.
FONTE
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