31 10 2007
Hoje, o Dep. Ronaldo Cunha Lima renunciou ao mandato para fugir do julgamento no Supremo Tribunal Federal pela tentativa de homicídio de Tarcísio Burity. Como já comentei o episódio da tentativa de homicídio no post intitulado “Código da Vida de Saulo Ramos”, vou evitar o tema. No entanto, não posso deixar de tratar do foro por prerrogativa de função. Depois de 14 anos, quando chegado o momento de se julgar o Deputado Ronaldo Cunha Lima, bastou que houvesse uma renúncia para que o processo retorne à “estaca zero”. O Min. Joaquim Barbosa, certamente um dos maiores magistrado de nossa Suprema Corte, demonstrou repulsa à manobra do parlamentar.
Cunha Lima estava sendo processado no STF por um crime que, absolutamente, não possui qualquer relação com a sua função pública. Isto é, de fato, um privilégio.
A cada dia, estamos vendo as nossas instituições – já tão frágeis – sendo abaladas pelo mal uso do instituto do foro por prerrogativa de função. Tecnicamente, os agentes públicos deveriam temer o julgamento nos tribunais, porque encurtam as possibilidades recursais e, em tese, também diminuem o tempo de duração dos processos. Mas isto não é o que acontece na realidade. Efetivamente, o número de agentes que possuem foro especial aumentam a cada dia nos Estados, porque existe a certeza de que o instituto garante a impunidade. E quando presenciamos o esforço do Min. Joaquim Barbosa para levar um desses casos a julgamento, o acusado põe em prática o plano “B”, levando o processo ao juízo monocrático. As chances de Cunha Lima cumprir alguma pena são remotas.
Noutro caso recente (10 de outubro de 2007), o plenário do Supremo Tribunal Federal anulou o indiciamento dos senadores Aloizio Mercadante (PT-SP) e Magno Malta (PR-ES), sob o argumento de que a autoridade policial não pode indiciar agentes que possuem foro por prerregativa de função. Na situação, entendeu-se que somente cabe ao Supremo Tribunal Federal autorizar a abertura do procedimento investigatório contra quem possui foro nesta Corte (Inq. n. 2411, Rel. Min. Gilmar Mendes, 10.10.2007).
Tecnicamente, a decisão acima está adequada ao sistema constitucional, que assegura subordinação de determinadas autoridades a foros especiais. Em linhas práticas, o julgado cria mais um obstáculo para as investigações contra autoridades, principalmente porque nenhum tribunal no Brasil possui estrutura adequada para a tramitação das investigações e ações penais contra aqueles que possuem foro por prerrogativa. Ainda que o julgamento receba críticas das associações policiais em geral, como de fato está acontecendo, o mal em si não está na restrição de poderes autoridade policial, mas na própria existência de tribunais de exceção constitucionalizados – como chamo o foro por prerrogativa de função –, os quais estabelecem uma relação de desequilíbrio quanto ao tratamento penal dispensado a determinados agentes do Estado.
Não numa democracia, mas sim nos Estados autoritários, espera-se que exista um sistema tão amplo como o brasileiro de proteção às pessoas que ocupam funções do Estado. Alega-se que o foro se justifica em razão da função pública e não da pessoa e, por tal motivo, não se trata de um privilégio. Insisto que o foro por prerrogativa é sim um privilégio.
Em julho, Minas Gerais promoveu um “arrastão” na competência penal ao conceder foro especial a 1,3 mil autoridades estaduais e municipais, o que de fato gerará um ambiente de impunidade e morosidade judiciária nunca antes visto. Enquanto a sociedade civil espera a diminuição das hipóteses de foros especiais, estamos vendo uma debandada para os tribunais, onde há um ambiente propício para a morosidade judicial, já que estes órgãos não possuem estrutura para processar tantas autoridades.
Ora, se a Constituição instituiu um processo penal garantista – e isto é um fato – não há razão para se temer que certas pessoas sejam julgadas por juízes inferiores. Também se alega que os magistrados dos tribunais são mais independentes e que um juiz inferior poderia hostilizar um autoridade apenas para “aparecer”. Ora, contra estes juízes, já não existe o controle externo do CNJ, além de um amplo sistema recursal, que permite o controle dos atos judiciais pelos tribunais? Também aqui duvido que seja possivel determinar algum critério capaz de aquilatar o grau de independência dos magistrados inferiores em relação aos dos tribunais.
Um Estado que de fato possua um processo penal garantista deve confiar, pelos critérios de competência, que todos estejam sujeitos à mesma autoridade. E isso o foro por prerrogativa não assegura. O foro por prerrogativa de função exprime o retrato da sociedade discriminatória em que vivemos, onde a totalidade da população tem o direito à saúde garantido pela Constituição, mas apenas uma minoria – que paga plano de saúde – tem acesso efetivo à saúde de qualidade. Se não existissem uma saúde diferenciada para ricos e pobres, muito provavelmente o nosso sistema de saúde pública seria muito melhor.
Assim como o sistema de saúde, onde quem pode pagar ter acesso garantido, a Constituição institucionaliza que algumas pessoas tenham acesso a uma justiça diferenciada. Será que o Estado não estaria sendo mais protegido se todos fossem submetidos à mesma autoridade judicial e os tribunais exercessem apenas a função recursal?
A doutrina já discute propostas para a modificação das regras dos foros especiais. Ao lado dos que defendem a abolição completa do foro, existem as correntes intermediárias, que em linhas gerais propõem a diminuição das autoridades beneficiadas. Para alguns, apenas os agentes previstos na Constituição Federal deveriam ser beneficiados com os foros especiais. Seja como for, é preciso impor controle sobre quem tem foro por prerrogativa de função, caso contrário logo logo os tribunais deixarão de ter como principal função a de apreciar recurso.
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