Paulo Roberto de Almeida
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)
Para responder sinteticamente à pergunta do titulo, temos de primeiro nos colocar em ambos os lados da equação. Os professores do mestrado certamente esperam muito de uma dissertação: que os alunos façam um trabalho original, bem escrito, “novedoso”, que honre o curso e, sobretudo, a sua própria orientação e, talvez, que ela lhes tenha dado o mínimo de trabalho possível durante a pesquisa e a preparação. Quanto aos alunos do mestrado, bem, conforme a velha lei dos comportamentos inerciais (e também aquela do menor esforço), eles desejam, sobretudo, que a dissertação possa ser feita com o mínimo de trabalho possível, rapidamente, sem muita “chateação” do professor, e que a defesa possa se fazer en douceur, isto é, sem grandes sobressaltos em face da banca.
Estou exagerando, claro, e talvez sendo maldoso, pois acredito que a maior parte dos professores exerce seu trabalho consciensiosamente, assim como acredito que boa parte dos alunos trabalha seriamente seus projetos e a pesquisa e espera que o trabalho, uma vez concluído, possa lhes trazer algum benefício profissional, um engrandecimento cultural, quando não satisfação intelectual. Voilà, acho que fui mais justo desta vez.
Mas, deixando esses subjetivismos de lado, vejamos como poderíamos conceber um processo de preparação, de elaboração e de defesa de uma dissertação de mestrado que mantenha padrões aceitáveis de qualidade intrínsaeca e que guarde coerência com os propósitos e afinidade de espírito com o mestrado
Formularei alguns comentários pessoais em função dos seguintes critérios: objeto, metodologia, desenvolvimento do trabalho, originalidade, finalidade ou “valor social”, bibliografia e processo de avaliação. Devo alertar, desde já, sobretudo em direção dos que podem pensar o contrário, que eu mesmo não me considero especialmente habilitado a realizar orientações. Espero ser corrigido e complementado nestes comentários pessoais por professores mais competentes do que eu na fina arte da orientação.
1. Objeto:
O mestrando deve, em pleno acordo com o seu orientador, definir o tema de sua dissertação dentro do campo de estudos coberto pelo mestrado
A elaboração pode ser mais conceitual do que empírica ou de estudo de caso, mas as mesmas regras de cobertura da área e elaboração própria devem valer também para esse tipo de dissertação. Aliás, não existem regras pré-definidas quanto à maneira de se abordar qualquer objeto considerado válido ou pertinente para a dissertação: pode se ter um trabalho relativamente “estático” – de cobertura da legislação ou da situação existente numa determinada área na própria contemporaneidade –, um outro mais “evolutivo” – ou seja, historicamente linear ou recapitulativo –, ou ainda uma reflexão do autor quanto ao que ele considera uma “insuficiência” da literatura ou dos estudos de caso naquela área, que ele decide então completar por uma contribuição original com base em seu interesse pela questão. Todos os tipos de abordagem de um problema preciso são válidos, a priori.
O mestrando deve saber, em primeiro lugar, delimitar precisamente o seu objeto, “dialogar” com o tema, problematizando-o, para empregar um neologismo universitário. Não é necessário, em segundo lugar, que o mestrando ofereça todas as respostas que um determinado objeto suscita naquela área de estudos, mas ele deve poder oferecer, ao menos, todas as perguntas pertinentes que se impõem em face do objeto escolhido. Não há, tampouco, necessidade de que o tema seja absolutamente inédito no conjunto dos problemas “dissertáveis” normalmente contemplados num curso de mestrado, mas o mestrando não deve realizar uma mera síntese da literatura disponível. Certos “temas de fronteira” se prestam particularmente para um tratamento de tipo “exploratório”.
Como guia “estruturante” da apresentação inicial da problemática, o candidato pode se deixar guiar, onde couber, pelas famosas seis perguntas de todo jornalista: o que, quando, quem, onde, como e por que? A última pergunta também comporta uma espécie de rationale explicativa: afinal de contas, o esforço de reflexão crítica aparece como um componente indispensável de um curso de mestrado bem sucedido. Ele é a própria razão de ser de qualquer mestrado.
2. Metodologia:
Muito professores falam de um “marco teórico” como algo “indispensável” ao trabalho do mestrando, e com isso conseguem tirar várias noites de sono do candidato, que adentra na selva selvaggia da bibliografia pertinente – geralmente restrita a poucos “barões” da teoria em ciências humanas, de extração francesa ou alemã – em busca de algum enquadramento teórico para o seu objeto escolhido. A teoria certamente ajuda a pensar, mas ela não deve representar uma camisa de força, do contrário um candidato desprevenido, que pretenda, por exemplo, fazer uma dissertação sobre a informalidade laboral no Brasil, pode se interrogar sobre o que o inefável Foucault teria a dizer sobre isso. Não creio, pessoalmente, que o “marco teórico” deva ser um monstro metafísico que ameace engolir o candidato se ele se sentir desconfortável com o tal de “enquadramento conceitual” do seu objeto: determinados temas, bem mais “pedestres” em sua concepção e desenvolvimento, podem dispensar essas filigranas teóricas.
A metodologia é, sobretudo, uma ferramenta analítica utilizada para descrever e discutir o objeto escolhido e a teoria é uma espécie de fundamentação conceitual desse objeto, com algumas generalizações sobre o tema
Em matéria de estilo, conviria descartar, absolutamente, todos os apostos e predicados que possam ser colados a autores e situações, inependentemente da ação em su: ou seja, adjetivos e advérbios de qualidade – este “insígne autor”, “numa excelente análise”, em tal “obra estupenda” – devem ser literalmente escorraçados do texto. Ficam apenas colocações fáticas, objetivas, comedidas...
3. Desenvolvimento do trabalho:
Todo trabalho redacional de caráter acadêmico (e até jornalístico), de qualquer tipo – artigo, dissertação, ensaio, tese, monografia, reportagem –, apresenta, como se sabe, começo, meio e fim (além das fontes). O que quer isso dizer, numa dissertação?
No que se refere à sua estrutura formal, ela pode ser dividida, grosso modo, em quatro ou cinco partes: introdução, corpo principal do trabalho, conclusões, bibliografia e, se for o caso, apêndice. Vejamos rapidamente o que cada uma delas deve conter.
A introdução, obviamente, deve ser o capítulo inaugural – já estou excluindo aqui essas coisas anódinas, do tipo prefácio, agradecimentos a Deus e à família, louvações aos professores maravilhosos etc. –, antes mesmo do início da Parte I do trabalho, se tal for a escolha. Ela deve conter uma exposição precisa do objeto da dissertação, uma descrição do conteúdo da própria dissertação, eventuais particularidades na abordagem do tema – dificuldades encontradas, por exemplo – e uma antecipação de quais serão as conclusões do trabalho. Dividida em seções, a introdução pode inclusive conter a metodologia, a discussão conceitual ou o famoso “marco teórico”. Se metodologia e “marco teórico” forem suficientemente importantes no trabalho, eles podem ser objetivo de um capítulo à parte, um segundo capítulo inagural, por exemplo.
O corpo do trabalho contém o desenvolvimento dos argumentos do autor. Sua estrutura formal, cela va de soi, pode variar muito. Existem teses e dissertações com mais de uma dúzia de capítulos, eventualmente divididos em duas ou mais partes, assim como existem trabalhos contendo apenas quatro ou cinco capítulos de natureza cronológica-evolutiva ou temática-funcional. A divisão entre partes e capítulos e o tratamento dado pelo autor aos diferentes subtemas do trabalho devem ser discutidos pelo candidato com o seu orientador, para evitar aquele tipo de arranjo disfuncional, com capítulos desiguais entre si, que podem acabar integrando uma cara de princesa a um corpo de Frankenstein.
Conclusões são conclusões em qualquer lugar do mundo, apesar de que certos trabalhos ainda ousam discutir novos problemas – e inserir notas de rodapé – nesse único capítulo conclusivo, que nada mais faz senão recolher os resultados parciais dos capítulos ou confirmar as hipóteses iniciais do trabalho, agregando as “descobertas” do autor no decurso da pesquisa e suas reflexões críticas sobre o objeto
Quanto à bibliografia – devidamente normalizada, assim como as notas de rodapé – e eventual(is) apêndice(s) – para recolher todos aqueles suportes documentais que sobrecarregariam demasiado o corpo do texto – não preciso me estender sobre isso, pois cada um sabe o que fazer a respeito. Ouso expressar uma única preferência pessoal nesse particular: detesto aqueles trabalhos (e livros) nos quais é preciso ir constantemente ao final do capítulo, ou da obra, para ler notas ou ter as referências completas dos trabalhos citados; ainda que notas de rodapé, e remissões completas, compliquem a feitura da obra, o conforto do leitor deve vir em primeiro lugar.
4. Originalidade:
Ninguém está pedindo a reinvenção da roda, ou a redescoberta do Brasil, numa “simples” dissertação de mestrado, mas inovação e originalidade, sem glórias e adereços, podem ser extremamente bem-vindos, sobretudo se o autor pretende prosseguir carreira acadêmica ou fazer daquilo a alavanca de uma futura tese. Em todo caso, o trabalho será ainda mais valorizado se ele contiver, além da revisão da literatura corrente e de uma síntese no estrito limite do estado da arte, algum aporte próprio do autor, sua contribuição para uma nova visão daquele velho problema, seus próprios findings com base numa leitura crítica dos autores consagrados. Em outros termos, originalidade ma non troppo.
5. Finalidade ou “valor social” do trabalho:
O “valor de uso” da dissertação é o de assegurar o sucesso do seu autor nesse rito de passagem que constitui um mestrado acadêmico. O seu “valor de troca” é representado pelo aproveitamento que se possa fazer do trabalho fora dos limites estritos – e por vezes estreitos – da academia. Dali deve necessariamente sair um pequeno resumo para ampla divulgação – e agora a Capes passa a exigir depósito eletrônico do trabalho – e um artigo para publicação em veículo especializado. Melhor ainda se dali resultar um livro, mas o “dissertando” não deve necessariamente redigir o texto com essa idéia
Aliás, durante a própria preparação do trabalho, na fase de pesquisa, ou ainda durante os créditos do mestrado, o candidato já deve ser orientado a preparar capítulos de conteúdo substantivo como se fossem artigos “publicáveis”, o que já representa uma etapa na “vaorização social” do seu trabalho de pesquisa. O autor deve poder sobreviver a essas fases árduas que os americanos chamam de ABD (all but dissertation), mas o trabalho também deve ter o mérito de “sobreviver” ao próprio autor, sob a forma de um ou mais artigos ou, hopefully, um livro comercial.
6. Bibliografia:
“Professor, o que eu preciso ler primeiro?” Essa pergunta, aceitável na graduação, já não parece mais cabível no mestrado. A apresentação de um projeto de mestrado supõe que o candidato já tenha definido pelo menos uma bibliografia inicial e elementar. Mas, claro, o mestre está ali para isso mesmo: indicar autores e títulos que lhe parecem ser obrigatórios na pesquisa e discussão daquele problema. Mas, atenção mestrando, você necessariamente saberá mais que o seu mestre naquele tema particular, se não no início, pelo menos ao final da pesquisa e redação. Mestres não podem ser especialistas em tudo e geralmente não o são. A bibliografia deve ser progressivamente construída pelo próprio candidato, e não apenas na base do Google e manuais da área: pesquisas em bibliotecas restam indispensáveis para qualquer trabalho bem feito.
Quanto à incorporação da literatura disponível no próprio trabalho, algum meio termo é possível. Assim como certos projetos possuem mais bibliografia do que idéias claras, certas dissertações deixam a desejar em matéria de cobertura bibliográfica. Por certo que uma dissertação não precisa esgotar todo o campo da pesquisa corrente, mas a revisão da literatura relevante aparece como indispensável a um bom trabalho do gênero. Autores estrangeiros deve entrar em função do mérito próprio da discussão, e não porque sejam mais “sapientes” que os nacionais – na maior parte dos casos eles de fato o são –, mas, também porque são mais numerosos, como se vê numa pesquisa do tipo Google Scholar (não esquecer, obviamente, de pesquisar com as palavras-chave em inglês, e não apenas em português). Por fim, apliquem, mesmo a contragosto, as normas da ABNT...
7. Processo de avaliação:
Entre o projeto e a finalização da dissertação deveria haver, idealmente, um exame de qualificação, isto é, uma avaliação intermediária para verificar se o candidato está raciocinando corretamente. Pode ser o capítulo central da obra – ainda em versão preliminar – ou uma apresentação geral do trabalho, em sessão na qual o candidato pode inclusive externar suas dúvidas, angústias e outros conflitos bibliográficos. É provável que os professores presentes façam tantas exigências e sugiram tantos títulos que o pobre candidato saia da sessão ainda mais angustiado, mas algo ele sempre vai aprender: a não pretender abarcar o mundo da próxima vez...
O orientador tem, a partir daí, uma responsabilidade especial quanto à redação e apresentação do trabalho final, para evitar surpresas desagradáveis em face da banca de examinadores. Pela lei dos rendimentos decrescentes, tudo tende a ficar mais difícil se o candidato delonga em demasia o exercício de redação. Este precisa ser constante, regular e com consultas periódicas ao orientador, de forma que, ao chegar na banca, tanto um quanto outro já não mais farão surpresas um ao outro. Se houver, elas virão dos demais membros da banca, que por vezes abusam do direito de fazer terrorismo psicológico no momento da defesa. Um coisa é certa: se o candidato chegou até ali – e supondo-se que o orientador tenha feito direitinho a sua parte –, ele já está aprovado numa proporção perto de 90% do final do exercício. Numa banca de doutoramento, na maior parte das vezes, o candidato sabe mais que os examinadores sobre o seu objeto de pesquisa, o que não é, ou não deveria ser, o caso nos mestrados. Mas, ainda assim, são fortes as chances de que o mestrando possa ensinar algumas coisas novas aos seus examinadores. Portanto, as palavras-chave nessas ocasiões são: confiança em si mesmo e segurança nas expressões.
Tendo cumprido todas as etapas do ritual, o candidato se descobre então um feliz sobrevivente de uma navegação que costuma durar de dois a três anos (com recifes e algumas sereias pelo caminho). Chegando finalmente na sua Ítaca, ele pode descansar por mais alguns dias, antes de retomar o seu périplo. Até ali ele trabalhou pela dissertação; a partir dali, o novo mestre poderá colocar a dissertação a trabalhar por ele...
1606; Brasília: 21 maio 2006
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