14 02 2008
Enquanto a Política esvazia-se, aos poucos, em questões internas que não consegue resolver, a sociedade se estarrece com os casos de recém-nascidos abandonados. No entanto, tampouco ninguém pensa na quantidade de mães que estão, igualmente, abandonadas… A nossa falsa moral está levando nossos bebês às latas de lixo da sociedade, mas, mesmo assim, é crescente movimentos sociais que buscam um retorno de um Estado moralista e ideológico.
No séc. XIX, o professor sueco Bluntschli desenvolveu a tese de que o Estado possuía o sexo masculino. A idéia serviu para criticar instituições e conceitos machistas da sociedade, os quais ainda se renovam na época de hoje. Por isto, Pablo Verdú chega a dizer que as mulheres vivem uma espécie de apartheid (”Curso de Derecho Politico”. V. IV, Madrid: Tecnos, 1984, p. 335).
O aborto ainda continua sendo um desses conceitos que se mascaram para não revelar o conteúdo opressor contra as mulheres. Quando o debatemos, não enfrentamos a questão das mulheres abandonadas, mas somos levados a suscitar temas de ordem moral e dogmática, simplesmente para condenar a prática. De fato, a sociedade está, razoavelmente, organizada para combater o aborto; digo razoalvelmente, porque não consegue combater as suas causas.
Efetivamente, o aborto já se trata de uma prática tolerada pelo Estado e pela sociedade. Há vários anos que o maior Tribunal do Júri do país, o de São Paulo, não leva uma mulher a julgamento por este crime. E isto se repete nos júris do Brasil inteiro. Raramente, os casos de abortos são julgados definitavemente.
E nós continuamos, desse modo, dissimulando que o aborto é culturalmente condenado. Estamos equivocados. No âmbito do Judiciário, são crescentes os números de alvarás de aborto assistido. Embora o Código Penal admita a medida extrema apenas em caso de estupro ou para salvar a vida da gestante (art. 128), a 16ª Vara Criminal de São Paulo, por exemplo, vem admitindo a prática há vários anos, quando existir risco à integridade psicológica da mãe, principalmente em casos de anencefálos.
Numa democracia substancial, é preciso que o Estado e o Direito Penal sejam inteiramente amorais. Mas não estamos vendo isso acontecer, muito pelo contrário, o Estado se torna cada vez mais (i)moral.
A defesa (ou não) do aborto pode (e deve) ser encabeçada por segmentos da sociedade civil. A Igreja tem todo direito de impor aos seus fiéis a proibição da prática abortiva. Mas, o Estado, representante do pacto de todos os membros da sociedade, não deve, à custa da defesa de um conceito moral, ignorar completamente os abortos que são (e continuarão sendo) praticados sem assistência médica. Não mais podemo fechar os olhos para as novas contingências da família na sociedade pós-moderna, que exigem uma revisão das hipóteses estritas de aborto legal.
Enquanto a sociedade multiplica os números dos filhos de ninguém, as políticas públicas de adoção sucumbem à predileção social por crianças “brancas e apessoadas”. E isto não é tudo. Muitos dos lares de crianças abandonadas apenas reproduzem o conceito de instituições totais (Erving Goffman), incapazes de estimular uma adequada vida familiar. Os filhos de ninguém nunca terão família.
Apesar disso, o aborto não se presta para qualquer política criminal eugênica. Equivocadamente, o Governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, baseado em estatísticas do livro Freakonomics, de Steven Levitt, defendeu a medida em nome da redução da criminalidade.
Sob outra ótica mais concreta, o aborto deve ser considerado como uma ferramenta de libertação ou de reconhecimento da autonomia e da igualdade feminina. Vale dizer, é preciso considerar que muitas mães da sociedade continuam fazendo a prática em clínicas particulares, longe dos olhos do Estado, enquanto as pobres ficam sem qualquer assistência pública, exceto quanto à ameaça do sistema punitivo.
A sociedade civil deveria mesmo se revoltar contra os Senadores que não precisam prestar contas da verba de gabinete de R$ 15.000,00. Recentemente, houve um alarde público quando uma ministra mandou a classe média “relaxar e gozar”, mas ninguém se admira quando outros “relaxam e gozam” com o dinheiro público. Nos tempos em que vivemos, o “relaxar e gozar” também nos cobra um ato de auto-reflexão e responsabilidade. Imoral mesmo é condenar à morte as mulheres que praticam abortos clandestinos sem assistência de saúde pública.
Enquanto não conquistarmos um Estado inteiramente laico, continuaremos a levar para o lixo os nossos bebês. É chegada a hora de debater o aborto sob a ótica das mulheres abandonadas. No seio do problema dos filhos indesejados está o das mães indesejadas. No seio da polêmica do aborto, está uma sociedade masculina.
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*Artigo publicado no Jornal Gazeta do Oeste, Coluna De Fato e de Direito, Mossoró, em 03/02/08
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