Plenário
Políticas de ação afirmativa e reserva
de vagas em universidades públicas - 1
O Plenário julgou improcedente pedido formulado em arguição de
descumprimento de preceito fundamental ajuizada, pelo Partido Democratas - DEM,
contra atos da Universidade de Brasília - UnB, do Conselho de Ensino, Pesquisa
e Extensão da Universidade de Brasília - Cepe e do Centro de Promoção de
Eventos da Universidade de Brasília - Cespe, os quais instituíram sistema de
reserva de 20% de vagas no processo de seleção para ingresso de estudantes, com
base em critério étnico-racial. Preliminarmente ,
admitiu-se o cabimento da ação, por inexistir outro meio hábil para sanar a
lesividade questionada. Apontou-se entendimento da Corte no sentido de que a
subsidiariedade da via eleita deveria ser confrontada com a existência, ou não,
de instrumentos processuais alternativos capazes de oferecer provimento
judicial com eficácia ampla, irrestrita e imediata para solucionar o caso.
Articulou-se que, diante da natureza infralegal dos atos impugnados, a ação
direta de inconstitucionalidade não seria medida idônea para o enfrentamento da
controvérsia, tampouco qualquer das ações que comporiam o sistema de jurisdição
constitucional abstrata. De igual modo, repeliu-se alegada conexão ante
eventual identidade de causa de pedir entre esta ADPF e a ADI 2197/RJ. Ocorre
que as ações de índole abstrata não tratariam de fatos concretos, razão pela
qual nelas não se deveria, como regra, cogitar de conexão, dependência ou
prevenção relativamente a outros processos ou julgadores. Ademais, avaliou-se
que o tema relativo às ações afirmativas inserir-se-ia entre os clássicos do
controle de constitucionalidade, e seria conveniente que a controvérsia fosse
definitivamente resolvida pelo STF, para colocar fim a polêmica que já se
arrastaria, sem solução, por várias décadas nas diversas instâncias
jurisdicionais do país.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012.
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No mérito, explicitou-se a abrangência da matéria. Nesse
sentido, comentou-se, inicialmente, sobre o princípio constitucional da
igualdade, examinado em seu duplo aspecto: formal e material. Rememorou-se o
art. 5º, caput, da CF, segundo o qual ao Estado não seria dado fazer
qualquer distinção entre aqueles que se encontrariam sob seu abrigo. Frisou-se,
entretanto, que o legislador constituinte não se restringira apenas a proclamar
solenemente a igualdade de todos diante da lei. Ele teria buscado emprestar a
máxima concreção a esse importante postulado, para assegurar a igualdade
material a todos os brasileiros e estrangeiros que viveriam no país,
consideradas as diferenças existentes por motivos naturais, culturais, econômicos,
sociais ou até mesmo acidentais. Além disso, atentaria especialmente para a
desequiparação entre os distintos grupos sociais. Asseverou-se que, para
efetivar a igualdade material, o Estado poderia lançar mão de políticas de
cunho universalista — a abranger número indeterminado de indivíduos — mediante
ações de natureza estrutural; ou de ações afirmativas — a atingir grupos
sociais determinados — por meio da atribuição de certas vantagens, por tempo
limitado, para permitir a suplantação de desigualdades ocasionadas por
situações históricas particulares. Certificou-se que a adoção de políticas que
levariam ao afastamento de perspectiva meramente formal do princípio da
isonomia integraria o cerne do conceito de democracia. Anotou-se a superação de
concepção estratificada da igualdade, outrora definida apenas como direito, sem
que se cogitasse convertê-lo em possibilidade.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012.
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Reputou-se, entretanto, que esse desiderato somente seria
alcançado por meio da denominada “justiça distributiva”, que permitiria
a superação das desigualdades no mundo dos fatos, por meio de intervenção
estatal que realocasse bens e oportunidades existentes na sociedade em
benefício de todos. Lembrou-se que o modelo constitucional pátrio incorporara
diversos mecanismos institucionais para corrigir distorções resultantes da
incidência meramente formal do princípio da igualdade. Sinalizou-se que, na
espécie, a aplicação desse preceito consistiria em técnica de distribuição de
justiça, com o objetivo de promover a inclusão social de grupos excluídos,
especialmente daqueles que, historicamente, teriam sido compelidos a viver na
periferia da sociedade. Em seguida, elucidou-se o
conceito de ações afirmativas, que seriam medidas especiais e concretas para
assegurar o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos, com o fito de
garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos
do homem e das liberdades fundamentais. Explanaram-se as diversas modalidades
de ações afirmativas empregadas em vários países: a) a consideração do critério
de raça, gênero ou outro aspecto a caracterizar certo grupo minoritário para
promover sua integração social; b) o afastamento de requisitos de antiguidade
para a permanência ou promoção de membros de categorias socialmente dominantes
em determinados ambientes profissionais; c) a definição de distritos eleitorais
para o fortalecimento de minorias; e d) o estabelecimento de cotas ou a reserva
de vagas para integrantes de setores marginalizados. Ademais, expôs-se a origem
histórica dessas políticas. Sublinhou-se que a Corte admitira, em outras
oportunidades, a constitucionalidade delas.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012.
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Demonstrou-se que a Constituição estabeleceria que o ingresso
no ensino superior seria ministrado com base nos seguintes princípios: a)
igualdade de condições para acesso e permanência na escola; b) pluralismo de
ideias; e c) gestão democrática do ensino público (art. 206, I, III e IV). Além
disso, os níveis mais elevados do ensino, pesquisa e criação artística seriam
alcançados segundo a capacidade de cada um (art. 208, V). Exprimiu-se que o
constituinte teria buscado temperar o rigor da aferição do mérito dos
candidatos que pretendessem acesso à universidade com o princípio da igualdade
material. Assim, o mérito dos concorrentes que se encontrariam em situação de
desvantagem com relação a outros, em virtude de suas condições sociais, não
poderia ser aferido segundo ótica puramente linear. Mencionou-se que essas
políticas não poderiam ser examinadas apenas sob o enfoque de sua
compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente
considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre
outros. Deveriam, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico
sobre o qual se assentaria o Estado, desconsiderados interesses contingenciais.
Dessumiu-se que critérios objetivos de seleção, empregados de forma
estratificada em sociedades tradicionalmente marcadas por desigualdades
interpessoais profundas, acabariam por consolidar ou acirrar distorções
existentes. Nesse aspecto, os espaços de poder político e social manter-se-iam
inacessíveis aos grupos marginalizados, a perpetuar a elite dirigente, e a
situação seria mais grave quando a concentração de privilégios afetasse a
distribuição de recursos públicos. Evidenciou-se que a legitimidade dos
requisitos empregados para seleção guardaria estreita correspondência com os
objetivos sociais que se buscaria atingir. Assim, o acesso às universidades
públicas deveria ser ponderado com os fins do Estado Democrático de Direito.
Impenderia, também, levar em conta os postulados constitucionais que norteariam
o ensino público (CF, artigos 205 e 207). Assentou-se
que o escopo das instituições de ensino extrapolaria a mera transmissão e
produção do conhecimento em benefício de poucos que lograssem transpor seus
umbrais, por partirem de pontos de largada social ou economicamente
privilegiados. Seria essencial, portanto, calibrar os critérios de seleção à
universidade para que se pudesse dar concreção aos objetivos maiores colimados
na Constituição. Nesse sentido, as aptidões dos candidatos deveriam ser
aferidas de maneira a conjugar-se seu conhecimento técnico e sua criatividade
intelectual ou artística com a capacidade potencial que ostentariam para
intervir nos problemas sociais. Realçou-se que essa metodologia de seleção
diferenciada poderia tomar em consideração critérios étnico-raciais ou
socioeconômicos, para assegurar que a comunidade acadêmica e a sociedade fossem
beneficiadas pelo pluralismo de ideias, um dos fundamentos do Estado brasileiro
(CF, art. 1º, V). Partir-se-ia da premissa de que o princípio da igualdade não
poderia ser aplicado abstratamente, pois procederia a escolhas voltadas à
concretização da justiça social, de modo a distribuir mais equitativamente os
recursos públicos.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012.
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Confrontou-se a inexistência, cientificamente comprovada, do
conceito biológico ou genético de raça, com a utilização do critério
étnico-racial para fins de qualquer espécie de seleção de pessoas. Sublinhou-se
que a Corte, nos autos do HC 82424 QO/RS (DJU de 19.3.2004), debatera o
significado jurídico do termo “racismo” (CF, art. 5º, XLII) e afastara o
conceito biológico, porquanto histórico-cultural, artificialmente construído
para justificar a discriminação ou a dominação exercida por alguns indivíduos
sobre certos grupos, maliciosamente reputados inferiores. Ressurtiu-se que, se
o constituinte de 1988 qualificara de inafiançável o crime de racismo, com o
escopo de impedir a discriminação negativa de determinados grupos, seria
possível empregar a mesma lógica para autorizar a utilização estatal da
discriminação positiva, com vistas a estimular a inclusão social de grupos
excluídos. Explicou-se que, para as sociedades contemporâneas que passaram pela
experiência da escravidão, repressão e preconceito, ensejadora de percepção
depreciativa de raça com relação aos grupos tradicionalmente subjugados, a
garantia jurídica de igualdade formal sublimaria as diferenças entre as
pessoas, de modo a perpetrar as desigualdades de fato existentes. Reportou-se
que o reduzido número de negros e pardos detentores de cargos ou funções de
relevo na sociedade resultaria da discriminação histórica que as sucessivas
gerações dos pertencentes a esses grupos teriam sofrido, ainda que de forma
implícita. Os programas de ação afirmativa seriam, então, forma de compensar
essa discriminação culturalmente arraigada. Nessa linha de raciocínio,
destacou-se outro resultado importante dessas políticas: a criação de
lideranças entre os grupos discriminados, capazes de lutar pela defesa de seus
direitos, além de servirem como paradigmas de integração e ascensão social.
Como resultado desse quadro, registrou-se o surgimento de programas de
reconhecimento e valorização de grupos étnicos e culturais. Ressaiu-se que,
hodiernamente, justiça social significaria distinguir, reconhecer e incorporar
à sociedade valores culturais diversificados. Esse modo de pensar revelaria a
insuficiência da utilização exclusiva do critério social ou de baixa renda para
promover a integração de grupos marginalizados, e impenderia incorporar-se nas
ações afirmativas considerações de ordem étnica e racial. Salientou-se o seu
papel simbólico e psicológico, em contrapartida à histórica discriminação de
negros e pardos, que teria gerado, ao longo do tempo, a perpetuação de
consciência de inferioridade e de conformidade com a falta de perspectiva, tanto
sobre os segregados como para os que contribuiriam para sua exclusão.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012.
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Discorreu-se sobre o papel integrador da universidade e os
benefícios das ações afirmativas, que atingiriam não apenas o estudante que
ingressara no sistema por intermédio das reservas de vagas, como também todo o
meio acadêmico, dada a oportunidade de conviver com o diferente. Acrescentou-se
que esse ambiente seria ideal para a desmistificação dos preconceitos sociais e
para a construção de consciência coletiva plural e culturalmente heterogênea. A
corroborar essas assertivas, assinalaram-se diversas ações afirmativas
desenvolvidas a respeito do tema nos EUA. Examinou-se, também, a adequação dos
instrumentos utilizados para a efetivação das políticas de ação afirmativa com
a Constituição. Reconheceu-se que as universidades adotariam duas formas
distintas de identificação do componente étnico-racial: autoidentificação e
heteroidentificação. Declarou-se que ambos os sistemas, separados ou
combinados, desde que jamais deixassem de respeitar a dignidade pessoal dos
candidatos, seriam aceitáveis pelo texto constitucional. Por sua vez, no que toca
à reserva de vagas ou ao estabelecimento de cotas, entendeu-se que a primeira
não seria estranha à Constituição, nos termos do art. 37, VIII. Afirmou-se, de
igual maneira, que as políticas de ação afirmativa não configurariam meras
concessões do Estado, mas deveres extraídos dos princípios constitucionais.
Assim, as cotas encontrariam amparo na Constituição.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012.
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Ressaltou-se a natureza transitória dos programas de ação
afirmativa, já que as desigualdades entre brancos e negros decorreriam de
séculos de dominação econômica, política e social dos primeiros sobre os
segundos. Dessa forma, na medida em que essas distorções históricas fossem
corrigidas, não haveria razão para a subsistência dos programas de ingresso nas
universidades públicas. Se eles ainda assim permanecessem, poderiam
converter-se em benesses permanentes, em detrimento da coletividade e da democracia.
Consignou-se que, no caso da UnB, o critério da temporariedade fora cumprido,
pois o programa de ações afirmativas lá instituído estabelecera a necessidade
de sua reavaliação após o transcurso de dez anos. Por fim, no que concerne à
proporcionalidade entre os meios e os fins colimados nessas políticas,
considerou-se que a reserva de 20% das vagas, na UnB, para estudantes negros, e
de um pequeno número delas para índios, pelo prazo de citado, constituiria
providência adequada e proporcional a atingir os mencionados desideratos.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012.
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O Min. Luiz Fux ratificou que as ações afirmativas seriam
políticas eficazes de distribuição e de reconhecimento, porquanto destinadas a
fornecer espécies limitadas de tratamento preferencial para pessoas de certos
grupos raciais, étnicos e sociais, que tivessem sido vítimas de discriminação
de longa data. Clarificou que a igualdade não se efetivaria apenas com a
vedação da discriminação, senão com a igualdade para além da formal, ou seja, a
isonomia real como ultima ratio, a atender aos reclamos do não
preconceito e da proibição ao racismo como cláusulas pétreas constitucionais.
Aquilatou que o direito à diferença reivindicaria implementação ética da
igualdade material, escopo que não se alcançaria tão somente com promessas
legais abstratas, as quais não se coadunariam com a moderna percepção da
efetividade das normas constitucionais. Neste passo, qualificou as cotas em
questão como instrumento de transformação social. Preconizou que a construção
de sociedade justa e solidária imporia a toda a coletividade a reparação de
danos pretéritos, a adimplir obrigações morais e jurídicas. Aduziu que todos os
objetivos do art. 3º da CF, que prometeriam a construção de sociedade justa e
solidária, traduzir-se-iam na mudança para se alcançar a realização do valor
supremo da igualdade, a fundamentar o Estado Democrático de Direito
constituído. Reputou paradoxal a dificuldade de alunos de colégios públicos
chegarem às universidades públicas, as quais seriam compostas, na maioria, por
estudantes egressos de escolas particulares. Acresceu que a política das cotas
atenderia, à saciedade, o princípio da proporcionalidade, na medida em que
erigiria a classificação racial benigna, a qual não se compararia com
discriminações. Explanou que aquela visaria fins sociais louváveis, ao passo
que as últimas teriam cunho odioso e segregacionista.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012.
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Assentou que as políticas públicas implementadas pelas
universidades em nada violariam o princípio da reserva legal. Elas não
surgiriam de vácuo, mas teriam fulcro na Constituição, na legislação federal e
em atos administrativos (atos normativos e secundários). Nesse sentido, citou
normas criadas com essa finalidade: a) a Lei 9.394/96, que estabelece
Diretrizes e Bases para a Educação; b) a Lei 10.172/2001, que aprova o Plano
Nacional de Educação, a qual teria disposto que o ensino superior deveria criar
políticas que facilitassem às minorias vítimas de discriminação o acesso à
educação superior por meio de programas de compensação de deficiências de sua
formação escolar anterior; c) a Lei 10.558/2002, que estatui o Programa de
Diversidade na Universidade, ao definir como objetivo implementar e avaliar
estratégias para promoção do acesso ao ensino superior; d) a Lei 10.678/2003, que
cria a Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial; e) a
Lei 12.288/2010, que institui o Ordenamento da Igualdade Racial, ao estipular
que, no âmbito do direito à educação, a população afrodescendente deverá
receber do Poder Público programas de ação afirmativa; e f) a Convenção
Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial,
internalizada no ordenamento pátrio pelo Decreto 65.810/69. Por fim, relembrou
orientação da Corte no sentido de que o STF não defenderia essa ou aquela raça,
mas a raça humana.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012.
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A Min. Rosa Weber acrescentou que igualdade formal seria presumida,
a desprezar processos sociais concretos de formação de dessemelhanças. Avaliou
que as possibilidades de ação, escolha de vida, visões de mundo, chances
econômicas, manifestações individuais ou coletivas específicas seriam muito
mais restritas para aqueles que, sob a presunção da igualdade, não teriam suas
condições particulares consideradas. Nesse caso, assentou necessárias
intervenções do Estado por meio de ações afirmativas, a fim de que se
corrigisse a desigualdade concreta, de modo que a igualdade formal voltasse a
ter seu papel benéfico. Ademais, ponderou que, ainda que se admitisse a tese de
que a quase ausência de negros no ensino superior e nos postos mais altos do
mercado de trabalho e da vida social brasileira não se daria em razão de recusa
consciente pela cor, a disparidade social seria flagrante. Colacionou o dado de
que, dentre a parcela de 10% da população brasileira mais pobre, 75% seria
composta por pretos e pardos. Quanto ao princípio da proporcionalidade, aduziu
que o modelo não o feriria, haja vista que o fato de certa política pública
correr o risco de ser ineficaz não indicaria motivo para considerá-la
inadequada prima facie. Além disso, as universidades teriam conseguido
realizar de forma convincente seus objetivos com as cotas, de sorte a aumentar
o contingente de negros na vida acadêmica, mantê-los nos seus cursos,
capacitá-los para disputarem as melhores chances referentes às suas escolhas de
vida.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012.
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Não vislumbrou violação ao subprincípio da necessidade,
porquanto a política de cotas seria imediata e temporária, bem como tenderia a
desaparecer à medida que as discrepâncias sociais fossem diminuídas. Lembrou
não haver ofensa a qualquer direito subjetivo à ocupação de vagas do ensino
superior pelo mérito aferido na classificação do vestibular pura e
simplesmente. Isso porque a universalização do ensino diria respeito ao
fundamental e ao médio. Explicou que, se assim não fosse, não faria sentido
condicionar meritoriamente o acesso ao nível superior, pelo que não haveria
direito subjetivo a cursar faculdade, muito menos pública (CF, art. 208, V).
Ressaltou, então, existir espaço livre para realização de políticas públicas de
inclusão social que não violassem os princípios básicos de cunho individual e
coletivo, bem como aqueles que tivessem liame com o ensino superior. Destacou
inexistir afronta a critério de mérito, porque os concorrentes à vaga de
cotista submeter-se-iam a nota de corte. Além disso, as vagas remanescentes
poderiam ser redirecionadas para os demais candidatos aprovados e não
classificados. Realçou que as cotas possuiriam 3 tarefas: a) acesso ao ensino
superior do grupo representativo não encontrado de maneira significativa; b)
compreensão melhor da realidade brasileira e das suas condições de mudança; e
c) transformação dos meios sociais em que inseridas as universidades, com fito
de propiciar mais chances a quem essa realidade fora negada.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012.
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A Min. Cármen Lúcia anotou que a Constituição partiria da
igualdade estática para o processo dinâmico da igualação. Enfatizou a
responsabilidade social e estatal de que o princípio da igualdade dinâmica
fosse cumprido objetivamente. Exprimiu que o sentimento de inferioridade em
razão de falta de oportunidades comuns não poderia ser ignorado socialmente,
visto que fragilizaria grande parte de pessoas desprovidas de autorrespeito e
dignidade. Aludiu que as ações afirmativas seriam etapa diante de quadro em
que a igualdade e a liberdade de ser diferente ainda não teriam ocorrido de
forma natural. Neste contexto, consignou que a função social da universidade
seria propiciar os valores necessários aos menos aquinhoados historicamente com
oportunidades, a fim de que os princípios constitucionais fossem efetivados.
Arrematou que as políticas compensatórias deveriam ser acompanhadas de outras
providências com a finalidade de não reforçar o preconceito.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012.
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O Min Joaquim Barbosa definiu a discriminação como componente
indissociável do relacionamento entre os seres humanos. Salientou estar em
jogo, em certa medida, competição, espectro que germinaria em todas as
sociedades. Nestes termos, estatuiu que, quanto mais intensa a discriminação e
mais poderosos os mecanismos inerciais a impedir o seu combate, mais ampla a
clivagem entre o discriminador e o discriminado. Esclareceu que, aos esforços
de uns, em prol da concretização da igualdade, se contraporiam os interesses de
outros no status quo. Seria natural que as ações afirmativas sofressem
os influxos das forças antagônicas e que atraíssem considerável resistência,
sobretudo da parte daqueles que, historicamente, se beneficiaram da
discriminação dos grupos minoritários. No ponto, frisou que as ações
afirmativas definir-se-iam como políticas públicas voltadas à concretização do
princípio da igualdade material e da neutralização dos efeitos perversos da
discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição
física. Apontou que a igualdade deixaria de ser princípio jurídico a ser
respeitado por todos e passaria a se consubstanciar objetivo constitucional a
ser alcançado pelo Estado e pela sociedade. Ressaltou haver, no direito
comparado, vários casos de ação afirmativa desenhadas pelo Poder Judiciário —
naquelas circunstâncias em que a ele não restaria outra alternativa senão
determinar medidas cabíveis. Aduziu que, impostas ou sugeridas pelo Estado, por
seus entes vinculados e até mesmo por entidades privadas, essas providências
visariam combater não apenas discriminação flagrante, mas também aquela de
fato, de fundo cultural, estrutural, como a brasileira, arraigada de tal forma
na sociedade que as pessoas sequer a perceberiam. Afirmou que constituiriam a
mais eloquente manifestação da ideia de Estado diligente, daquele que tomaria
iniciativa, que não acreditaria na força invisível do mercado. Reputou que se
trataria de mecanismo sócio-jurídico destinado a viabilizar, primordialmente,
harmonia e paz social — que, mais cedo ou mais tarde, ver-se-ia seriamente
perturbada quando um grupo social expressivo estivesse eternamente à margem do
processo produtivo e dos benefícios do progresso. Registrou que essas ações
objetivariam robustecer o desenvolvimento econômico do país, à proporção que a
universalização do acesso à educação e ao mercado econômico teria, como
consequência inexorável, o crescimento macroeconômico, a ampliação generalizada
dos negócios, ou seja, o crescimento do país como um todo. Sobrelevou que a
história universal não registraria, na era contemporânea, nenhum exemplo de
nação que tivesse se erguido, de condição periférica à de potência econômica e
política, digna de respeito, na cena internacional, quando mantenedora, no plano
doméstico, de política de exclusão, fosse ela aberta ou dissimulada, legal ou
meramente estrutural ou histórica, em relação a parcela expressiva de sua
população.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012.
(ADPF-186)
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O Min. Cezar Peluso destacou o déficit educacional e cultural
da etnia negra, em virtude das graves e conhecidas barreiras institucionais de
seu acesso a esses bens. Sobressaiu que o acesso à educação seria meio
necessário e indispensável para a fruição de desenvolvimento social e
econômico. Frisou o dever ético e jurídico de o Estado e a sociedade promoverem
a solidariedade e o bem de todos sem preconceito racial e erradicarem a
marginalização. Julgou que a política de ação afirmativa em comento seria
experimento realizado pelo Estado, cujo sucesso poderia, ao longo do tempo, ser
controlado e aperfeiçoado. Afastou o argumento no sentido de que as cotas
seriam discriminatórias, visto que ignoraria as próprias discriminações,
formuladas pela Constituição, na tutela desses grupos atingidos por alguma
espécie de vulnerabilidade sócio-política. Ademais, rechaçou a tese de que,
após a obtenção do diploma, seria reproduzida a discriminação em desfavor dos
negros. Afirmou que o diploma garantiria o patrimônio educacional dessas
pessoas e que essa vantagem compensaria a possibilidade de alguma reprovação
pós-universidade. Repudiou, de igual modo, a ausência de distinção por etnia,
pois a discriminação negativa seria fenômeno humano, ligado às diferenças
fenotípicas, e irracional, como todo preconceito. Quanto à questão do mérito
pessoal, supostamente deixado de lado, disse que essa alegação ignoraria os
obstáculos historicamente opostos aos esforços dos grupos marginalizados e cuja
superação não dependeria das vítimas da marginalização, mas de terceiros.
Salientou que o merecimento seria critério justo, porém apenas em relação aos
candidatos que tivessem oportunidades idênticas ou assemelhadas. No que concerne
ao suposto incentivo ao racismo que as cotas proporcionariam, lembrou que a
experiência, até o momento, demonstraria a inocorrência desse fenômeno ou a sua
manifestação em
escala irrelevante. Por fim, observou que o critério racial
deveria ser aliado ao socioeconômico. Apontou, também, que seria contraditório
considerar elementos genotípicos — se fosse esse o critério adotado pela
comissão encarregada de apurar os destinatários das cotas — para permitir a
entrada na universidade de quem, pelas características fenotípicas, nunca fora
discriminado.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012.
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O Min. Gilmar Mendes consignou que o projeto da UnB seria pioneiro
dentre as universidades federais e, por isso, suscetível de questionamentos e
aperfeiçoamentos. Destacou que, no modelo da mencionada universidade, ter-se-ia
utilizado de critério exclusivamente racial, ausente em relação ao Prouni ,
por exemplo, em que, a despeito de se embasar na questão da raça, também teria
em conta a hipossuficiência do estudante. Desse modo, embora a forma adotada
por aquela instituição de ensino fosse autodesignativa por parte do candidato,
ter-se-ia criado verdadeiro tribunal racial, longe de ser infalível e
suscetível de distorções eventualmente involuntárias, por operar com quase
nenhuma transparência. Enfatizou que a modalidade escolhida teria a
temporalidade como sua característica e deveria vir seguida de um relatório —
um acompanhamento pari passu do resultado, ou seja, qual seria o efeito
da política pública em relação ao objetivo que se pretenderia. A diminuta
presença de negros nas universidades decorreria do contexto histórico
escravocrata brasileiro e da má qualidade das escolas públicas, porém, não se
poderia dizer que a fórmula estaria na melhoria das escolas públicas, sob pena
de se comprometer gerações que estariam na fase de transição desses
estabelecimentos de ensino para o vestibular. Ressurtiu que, nesse compasso, a
população negra, historicamente mais débil economicamente, não lograria
condições de pagar a perversidade do sistema, que se faria mais cruel ao não
permitir discussão sobre alguma forma de financiamento. Ressaltou ser notória a
presença, nas universidades federais, daqueles que, em princípio, passaram pela
escola privada. Concluiu necessária a revisão do parâmetro estabelecido.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012.
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O Min. Marco Aurélio entendeu harmônica com a Constituição e
com os direitos fundamentais nela previstos a adoção temporária e proporcional
do sistema de cotas para ingresso em universidades públicas, considerados
brancos e negros. Extraiu, do art. 3º da CF, base suficiente para acolher ações
afirmativas, maneira de corrigir desigualdades a favor dos discriminados.
Esclareceu que os objetivos fundamentais da República consubstanciariam
posturas dinâmicas, as quais implicariam mudança de óptica. Realçou que os
princípios constitucionais teriam tríplice função: a) a informativa, junto ao
legislador ordinário; b) a normativa, para a sociedade como um todo; e c) a
interpretativa, tendo em conta os operadores do Direito. Destacou que nem a
passagem do tempo, nem o valor “segurança jurídica” suplantariam a
ênfase dada pelo legislador constituinte ao crime racial (CF, art. 5º, XLII). Anotou que as normas proibitivas não seriam suficientes para
afastar a discriminação do cenário social e, no ponto, fez apelo ao Congresso
Nacional para que houvesse normas integrativas. Enumerou como exemplos de ação
afirmativa na Constituição: a) a proteção de mercado quanto à mulher (art. 7º,
XX); b) a reserva de vaga nos concursos públicos para deficientes (art. 37,
III); e c) o tratamento preferencial para empresas de pequeno porte e à criança
e ao adolescente (artigos 170 e 227, respectivamente). Assim, revelou
que a prática das ações afirmativas pelas universidades públicas brasileiras
denotaria possibilidade latente nos princípios e regras constitucionais
aplicáveis à matéria. Avaliou que a implementação por deliberação
administrativa decorreria do princípio da supremacia da Carta Federal e também
da previsão, presente no artigo 207, caput, dela constante, da autonomia
universitária. Aduziu que o Supremo, em visão evolutiva, já teria reconhecido a
possibilidade de incidência direta da Constituição nas relações calcadas pelo
direito administrativo.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012.
(ADPF-186)
Políticas de ação afirmativa e reserva
de vagas em universidades públicas - 17
Mencionou, ainda, que a definição dos critérios de admissão no
vestibular disciplinar-se-ia pelo edital, de acordo com os artigos 44, II, e
parágrafo único, e 53, caput, da Lei 9.394/97. Assinalou que a adoção de
políticas de ação afirmativa em favor de negros e de outras minorias no Brasil
não teria gerado o denominado “Estado racializado”, como sustentara o
arguente. A respeito, observou que seriam mais de dez anos da prática sem
registro de qualquer episódio sério de tensão ou conflito racial no Brasil que
pudesse ser associado a essas medidas. Versou que o art. 208, V, da CF deveria
ser interpretado de modo harmônico com os demais preceitos constitucionais, de
sorte que a cláusula “segundo a capacidade de cada um” somente poderia
referir-se à igualdade plena, tendo em vista a vida pregressa e as
oportunidades que a sociedade oferecera às pessoas. No ponto, ressaltou que a
meritocracia sem “igualdade de pontos de partida” seria apenas forma
velada de aristocracia. Apesar de reputar relevante a alegação de que o sistema
de verificação de cotas conduziria à prática de arbitrariedades pelas comissões
de avaliação, rechaçou-a. Explicou que essa assertiva não consubstanciaria
argumento definitivo contra a adoção da política de cotas. Ocorre que, na
aplicação do sistema, as distorções poderiam acontecer, mas se deveria presumir
que as autoridades públicas pautar-se-iam por critérios razoavelmente
objetivos. Ademais, registrou que descaberia supor o extraordinário, a fraude,
a má-fé, para tentar deslegitimar-se a política. Alfim, sobrelevou que somente
existiria a supremacia da Constituição quando, à luz desse diploma, vingar-se a
igualdade. Concluiu que a ação afirmativa evidenciaria o conteúdo democrático
do princípio da igualdade jurídica.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012.
(ADPF-186)
Políticas de ação afirmativa e reserva
de vagas em universidades públicas - 18
Em acréscimo, o Min. Celso de Mello assinalou que o presente
tema deveria ser apreciado não apenas sob a estrita dimensão
jurídico-constitucional, mas, também, sob perspectiva moral, pois o racismo e
as práticas discriminatórias representariam grave questão de índole moral com
que defrontada qualquer sociedade, notadamente, as livres e fundadas em bases democráticas.
Considerou que o ato adversado seria harmônico com o texto
constitucional e com os compromissos que o Brasil assumira na esfera
internacional, a exemplo da Conferência de Durban; da Convenção Internacional
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; da Declaração
Universal dos Direitos da Pessoa Humana; dos Pactos Internacionais sobre os
Direitos Civis, Políticos Econômicos, Sociais e Culturais; da Declaração e do
Programa da Ação de Viena. Destacou que os deveres
irrenunciáveis emanados desses instrumentos internacionais incidiriam de modo
pleno sobre o Estado brasileiro e impor-lhe-iam execução responsável em favor
da defesa e da proteção da integridade de todas as pessoas, em especial, dos
grupos vulneráveis que sofreriam a perversidade de injustas discriminações em
virtude de sua origem étnico-racial. No ponto, registrou que o conceito
de minoria não seria apenas numérico, mas, ao revés, apoiar-se-ia na noção de
vulnerabilidade, como nas discriminações de gênero.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012.
(ADPF-186)
Políticas de ação afirmativa e reserva
de vagas em universidades públicas - 19
Afirmou, outrossim, que o desafio do país seria a efetivação
concreta, no plano das realizações materiais, daqueles deveres
internacionalmente assumidos. Por outro lado, frisou que, pelo exercício da
função contramajoritária — decorrente, muitas vezes, da prática moderada de ativismo
judicial —, dar-se-ia consequência à própria noção material de democracia
constitucional. Consignou que as políticas públicas poderiam ser pautadas por
outros meios que não necessariamente pelo modelo institucional de ações
afirmativas, caracterizadas como instrumentos de implementação de mecanismos
compensatórios — e temporários — destinados a dar sentido aos próprios
objetivos de realização plena da igualdade material. Por fim, o Min. Ayres
Britto, Presidente, repisou a preocupação do texto constitucional, em seu
preâmbulo, com o bem estar e, assim, com distribuição de riqueza, patrimônio e
renda. Reputou que o princípio da igualdade teria sido criado especialmente
para os desfavorecidos e que a Constituição proibira o preconceito. Como forma
de instrumentalizar essa vedação, fomentara as ações afirmativas, a exigir do
Estado o dispêndio de recursos para encurtar distâncias sociais e promover os
desfavorecidos.
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e
26.4.2012. (ADPF-186)
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