A retórica da PERSONALIDADE DISTORCIDA: a personalidade do agente em julgamento
Fábio Wellington Ataíde Alves
Juiz de Direito no Rio Grande do Norte e mestrando na UFRN
ALVES, Fábio Wellington Ataíde. A retórica da personalidade distorcida : a personalidade do agente em julgamento. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.14, n.168, p. 10, nov. 2006.
O homem deve ser punido pelo que ele fez ou pelo que ele é? Em resposta a esta crucial indagação, feita por Liszt no início do século passado,(1) ainda encontramos quem se incline pela segunda alternativa. Os resquícios autoritários do Código Penal, sob influxo do ideal nacional-socialista dos anos quarenta, estão presentes em conceitos penais construídos a partir dos traços biológicos do autor. A circunstância judicial da personalidade do agente é um desses conceitos — de inspiração na velha biologia criminal — que vem recebendo um significado distante do contexto científico.
A doutrina dominante deixa claro que, para o Código Penal, a acepção da personalidade deve ser compreendida em sentido vulgar. Assim, Roberto Lyra analisa a personalidade do agente fora do ambiente clínico, sem pesquisa psicológica, unicamente perquirindo sobre a participação do réu no círculo cívico, isto é, sobre a sua conduta como pai; filho; esposo; amigo; profissional etc.(2) Aníbal Bruno também atribui ao magistrado o dever de situar a personalidade no “ambiente físico e sóciocultural (sic) em que vive o homem”,(3) razões pelas quais, como compreende Guilherme Nucci, o magistrado “não precisa ser um técnico para avaliar a personalidade”.(4)
Deste modo, dando azo à elevação da pena-base, comumente deparamo-nos com expressões judiciais que infligem ao agente — sob o comando de uma falsa retórica da personalidade — o porte de personalidade desvirtuada;personalidade distorcida; personalidade desviada; personalidade voltada à prática delitiva; personalidade perigosa; personalidade anti-social;personalidade comprometida pela falta de valores éticos e morais;personalidade voltada para o mal etc. Todas estas expressões, extraídas da jurisprudência e muito semelhantes à legislação penal do início do século passado, exprimem a retórica da personalidade distorcida,cuja fórmula-padrão empresta importância a um modelo de perversidade e predisposição do acusado para praticar más ações.
Hoje, impõe renegar-se a legitimidade da personalidade como circunstância capaz de determinar a valoração negativa da pena-base, uma vez que o agente não a tem voluntariamente. O magistrado, com avigora Amilton Bueno de Carvalho, não detém “habilitação técnica para proferir juízos de natureza antropológica, psicológica ou psiquiátrica, não dispondo o processo judicial de elementos hábeis (condições mínimas) para o julgador proferir ‘diagnósticos’ desta natureza”.(5) Em sua acepção vulgar, a personalidade desprovida dos elementos técnicos que a compõe, somente pode ser determinada para abrandar a pena-base, nunca para aumentá-la. A usual retórica judicialesvazia-se frente à incapacidade teórica para reconhecê-la cientificamente.
Ao contrário do que entende a doutrina dominante, o caráter não se confunde com a personalidade; enquanto esta é dinâmica, aquele possui natureza estática. O caráter admite representação por meio de traços comuns a um grupo de pessoas, enquanto a personalidade recusa a sistematização por modelos preconcebidos. Todo indivíduo possui a sua personalidade, sendo irrealizável determinar traços comuns a um grupo de pessoas. A personalidade é construída durante a história individual de cada ente.(6) Sempre será aleatória a tentativa de determiná-la a partir de um único fato ilícito — muitas vezes vagamente construído (idealizado) a partir de meros testemunhos. O processo penal não permite que a história individual do agente seja inventariada; no máximo logra perscrutar o fato criminoso, restando-lhe poucos meios capazes de permitir a constituição de um perfil psicológico do acusado.
Outrossim, fatores congênitos também são determinantes na formação da personalidade, não sendo proporcional que alguém tenha a pena elevada por força de circunstâncias para as quais não contribuíra. Para Donald Woods Winnicott, psicanalista inglês e inquestionável estudioso das raízes da personalidade transgressora, já surgem na infância as causas dos comportamentos anti-social, cuja ausência de tratamento apropriado converge à delinqüência juvenil, permitindo-se a instalação — já na fase adulta — de estado de personalidade psicopática.(7)
Termos vagos ou valorativos não se submetem à confrontação dialética do processo, motivo pelo qual o seu emprego esvazia a descrição do fato e, desde modo, compromete o sistema de garantias penais. O juiz quase sempre atribui ao réu uma personalidade calcada em conclusões cientificamente indemonstráveis, dando guarita à suposição segundo a qual todo aquele que comete o crime detém uma personalidade anômala em relação à “personalidade” de certo grupo social. Como explica Ferrajoli, a verdade jurídica deve permitir a refutação mediante contraprovas, sendo que juízos potestativos do tipo “Ticio é perigoso” ou “Caio é subversivo”, por fugirem do processo de cognição, cerceiam a defesa. É por isto que — anota o autor — hábitos mentais do sujeito, os julgamentos subjetivos, as ideologias pessoais e os preconceitos não condizem com a conotação de um juiz(o) imparcial.(8)
O princípio da individualização, portanto, deve ser contemplado em consonância com os demais princípios que norteiam a pena, especialmente os princípios da motivação e da taxatividade. Conseqüentemente, impõe-se que a personalidade do agente seja considerada apenas para beneficiá-lo, caso contrário também teremos de admitir que o homem deva ser punido pelo que ele é e não pelo que fez.
Notas
(1) A Teoria Finalista no Direito Penal. Campinas: LZN Editora, 2003, p. 39.
(2) LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal, v. II, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1955, p. 211.
(3) Das Penas. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, p. 95.
(4) “A Análise da Personalidade do Réu na Aplicação da Pena”, Boletim IBCCRIM, São Paulo, nº 153, agosto/2005, p. 02-03.
(5) TJRS, Ap. nº 70.005.127.295, 5ª Câmara Criminal, des. Amilton Bueno de Carvalho. Boletim IBCCRIM nº 129, agosto/2003. Precedentes no TJRS: Ap. Crim. nºs 70.000.592.683 e 70.000.767.269, 5ª Câmara Criminal, e Acórdão nº 296021173, 4ª Câmara Criminal do extinto Tribunal de Alçada RS – julgados nºs 100/143.
(6) FILLOUX, Jean C. A Personalidade, 4ª ed., trad. de Eunice Katunda, São Paulo: Difel, 1983, p. 13.
(7) Cf.: GORAYER, Raul. “O Observador Engajado”. Viver Mente & Cérebro: Coleção Memória da Psicanálise, São Paulo: Duetto Editorial, nº 5, s.d., pp. 78-83.
(8) Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal, trad. de Ana Paula Zomer,Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, pp. 132-5.
Fábio Wellington Ataíde Alves
Juiz de Direito no Rio Grande do Norte e mestrando na UFRN
Juiz de Direito no Rio Grande do Norte e mestrando na UFRN
2 comentários:
Interessante Dr.! Essa semana vou publicar no IBCCRIM sobre a aplicação da pena, um artigo que já está pronto.. Depois vou disponibilizar o link no blog (www.criminalistanato.blogspot.com)
Até mais.
Estou aguardando o artigo no IBCCRIM.
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