Publiquei na Revista Ritos da Associação dos Magistrados do Rio Grande do Norte o seguinte artigo:
Para onde vai a política associativa dos magistrados?
Fábio Ataíde
Juiz de Direito/RN e Professor/UFRN
Conselheiro da Associação dos Magistrados/RN
A MUDANÇA COMO FATOR DE EVOLUÇÃO
A partir da Constituição de 1988, um novo movimento associativo no Brasil surgiu de fato; houve uma ruptura no comportamento dos juízes. Foi o que realmente aconteceu. A magistratura mudou definitivamente. Rompeu modelos consagradas para enveredar por uma maneira diferente de agir. Para muitos juízes, houve mais ganhos do que perdas, mas, sem dúvida, não podemos deixar de tributar os ganhos a um sopro de vontade de cindir com o passado.
Certamente, toda essa mudança somente foi possível porque em um dado momento histórico não houve unidade entre os magistrados. É assim que evoluímos. Em muitas ocasiões históricas, o crescimento e a evolução dependeram da ruptura, da desunião mesmo. Tem sido dessa forma em todos os grandes movimentos humanos que empreenderam mudanças à vida em sociedade. Pensando em Robert K. Merton, digo que uma sociedade precisa de muitas pessoas conformadas para se estabilizar, mas sem os inconformados não evoluímos.
Foi dessa forma que – para exemplificar – a Igreja Católica somente realizou profundas mudanças em sua forma de agir, principalmente com o Concílio de Trento, depois que se viu ameaçada por um movimento Reformador.
No estágio social em que estamos, o embate político não se trata apenas de uma forma de levar a vida em sociedade, mas sim de uma questão de sobrevivência social. Há muito tempo, Napoleão percebeu isto quando afirmou que “a forma moderna do destino é a política”.
Portanto, na contemporaneidade, o destino de nossa vida deixa de estar em nossas próprias mãos para se doar à política. Aquilo que somos depende da entrega que fazemos ao jogo político e à vivência política de nossas ideias. Assim, como escreve Michel Foucault, quando não mais existir meios de revolução, a política deixa de existir (“Microfísica do Poder”. 24ª ed., trad. de Roberto Machado, Rio de Janeiro: Graal, 2007, p. 240).
A MULTIFUNCIONALIDADE DAS INSTITUIÇÕES
Efetivamente, a magistratura está unida em todas as suas lutas por prerrogativas. Não parece razoável entender que a vitória de uma ou outra questão particular – em beneficio de um ou outros juízes – seja suficiente para estabelecer uma cisão entre os magistrados. A magistratura deve ser maior...
Hoje, o movimento associativo está sendo guiado por várias frentes. A União Internacional de Magistrados, o principal órgão internacional de associação, compartilha essa batalha política com inúmeras outras entidades, como a Federação Latino-Americana de Magistrados (FLAM), a AMB, ANAMAGES, AJUFE ou o MOVIMENTO DOS JUÍZES PARA A DEMOCRACIA, somente para ficar com as entidades mais próximas. As Associações de hoje reforçam a luta pelo Estado Democrático de Direito e não apenas por interesses de todos juízes ou de uma classe deles.
Rigorosamente, não estou trazendo aqui nenhuma crítica à forma atual da política associativa, principalmente porque este modelo reforça a ideia de política associativa combativa e que se tornou realidade no Brasil alguns anos depois da Constituição de 1988.
A União Internacional de Magistrados, que detém papel consultivo na Organização das Nações Unidas, poderia muito bem servir de modelo para que entidades de classes nacionais também pudessem exercer função idêntica em questões complexas, no âmbito dos tribunais ou mesmo no Conselho Nacional de Justiça.
Nesse quadro, a nomeação do professor e juiz federal Walter Nunes da Silva Júnior para compor o Conselho Nacional de Justiça traz uma esperança muito grande para as associações de classe. Não apenas por causa da sua reconhecida capacidade intelectual, mas principalmente porque ele ocupou a presidência da Associação dos Juízes Federais, sendo de fato um dos membros do Conselho Nacional que conhece a magistratura nacional em seus variados aspectos por meio da política associativa. E isso não é tudo. As associações de classe deveriam ter cadeira cativa no CNJ.
O Conselho Nacional não será capaz de reconstruir a nossa magistratura sem dispor daqueles que conhecem a realidade judiciária pela política associativa. A não ser assim, vamos cair no erro de querer mudar a magistratura apertando botões e extraindo tickets normativos automatizados, ignorando a realidade, por exemplo, do juiz que exerce função lá na Comarca de Jardim de Piranhas, no Estado do Rio Grande do Norte.
De alguma forma posso dizer que somos todos filhos de uma desunião e de uma ruptura, que legitimou o início de uma era de lutas coletivas. O direito coletivizou-se. Espero que tudo continue assim mesmo. Uns vão “ganhar” e outros não, eu sei, mas no Estado Democrático não é mais possível estabelecer um modelo unificado em que todos saiam vencedores.
Como explica Coleman e Almond, as instituições políticas são multifuncionais, isto quer dizer que “os tribunais não só julgam, como também legislam, que a burocracia é uma das fontes mais importantes de legislação, que os corpos legislativos exercem a administração e justiça; que grupos de pressão promovem legislação e participam da administração; e que os meios de comunicação representam interesses e às vezes iniciam legislação”. Por isso, completam os autores escrevendo que a característica dos sistemas políticos é a diferenciação estrutural por meio de “emergência de legislaturas, órgãos executivos, políticos, burocratas, tribunais, sistema eleitoral, partidos, grupos de interesse, meios de comunicação”, ou seja, estruturas políticas especializadas agem paralelamente a estruturas primitivas, que também podem gozar de força política (ALMOND, Gabriel A.; COLEMAN, James S. (Coord.) “A Política das Áreas em Desenvolvimento”. Sem tradutor mencionado. Rio de Janeiro: USAID; Freitas Bastos, 1969, pp. 26 e 27).
A multifuncionalidade institucional fortalece o embate democrático e o apetite crítico das oposições. Na mesma proporção, também garante a legitimidade daqueles que exercem a liderança do poder associativo nas diversas frentes que estão abertas. De certa forma, não ignoro que o Conselho Nacional de Justiça seja ele mesmo um centro de poder associativo ou, pelo menos, para onde corre a vista do poder associativo. O Conselho já é o principal responsável pela criação de uma esperada magistratura nacional, inevitavelmente guardiã de todas as políticas públicas do Estado e não apenas de um governo.
JUDICIÁRIO E CONSTROLE
Está fácil perceber que a tendência da política associativa realizada pelas associações de classe é tornar-se cada vez mais fragmentada, mas isto não quer dizer que o movimento esteja enfraquecendo. Pelo contrário, a defesa de certas questões institucionais somente se torna viável por meio desses novos canais que surgem a cada dia. Já se foi o tempo em que as Associações de Magistrados tinham como função precípua promover a recreação de seus integrantes. Hoje em dia, o trabalho árduo começa e termina nos corredores políticos.
Fundamentalmente, o Judiciário é um Poder disciplinador. Porém, mais recentemente descobrimos que ele também é indisciplinado, o que tem justificado a criação de mecanismos disciplinadores do poder que disciplina. Neste palco, a política associativa aparece como um instrumento de controle, com vistas a evitar que a disciplina do Judiciário não se reverta contra as garantias estabelecidas para resguardar a sua função de disciplinar.
No séc. XXI, como o centro do poder decisório se transfere definitivamente do Executivo para o Judiciário, este poder se torna o palco das grandes questões disciplinadoras do Estado. É assim que os juízes se tornam eles próprios alvo da disciplina. Diante deste quadro que se abre, a política associativa vem não para garantir a indisciplina, mas para assegurar que os garrotes de controle não se tornem a razão do estrangulamento capital de um poder cuja importância somente agora foi conquistada.
A política está relacionada com a autoridade (cf. JONES, Roy E. “Análise Funcional da Política: uma discussão introdutória”. Trad. Lauro Augusto Machado Coelho. São Paulo: Brasiliense, 1976, p. 33). Se um único juiz decide que os políticos com “fichas sujas” são inelegíveis, esta “vontade individual” poderá não ter grande evocação política, mas se, ao contrário, uma associação cria um movimento em torno da mesma ideia, será muito possível que a médio prazo se consiga alimentar o sistema político com inputs necessários e talvez aprovar uma lei neste sentido. Vale dizer assim que uma decisão associativa pode tornar-se uma decisão para toda a sociedade.
Em essência, vejo o momento histórico como um dos mais saudáveis para a discussão de ideias e propostas, que só têm a beneficiar todos os magistrados. Seja quem for o gerente das questões institucionais, a magistratura nacional precisa continuar unida, ainda que dividida em várias frentes de batalha. E isto é a única garantia de nossa fortaleza.
Não faz muito tempo um anteprojeto de tratado internacional sobre a independência dos juízes da América Latina foi entregue pela AMB ao Ministério da Justiça brasileiro. Quero assinalar assim que é chegado o momento de cuidar das garantias mínimas de independência em seu aspecto global. O trabalho somente está começando...
REFERÊNCIAS
ALMOND, Gabriel A.; COLEMAN, James S. (Coord.) “A Política das Áreas em Desenvolvimento”. Sem tradutor mencionado. Rio de Janeiro: USAID; Freitas Bastos, 1969.
FOUCAULT, Michel. “Microfísica do Poder”. 24ª ed., trad. de Roberto Machado, Rio de Janeiro: Graal, 2007.
JONES, Roy E. “Análise Funcional da Política: uma discussão introdutória”. Trad. Lauro Augusto Machado Coelho. São Paulo: Brasiliense, 1976.
ATAÍDE, Fábio. Para onde vai a política associativa dos magistrados? “Ritos”. Natal, ano V, n. 5, p. 14 a 16, dez. de 2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário