segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Artigo publicado no Jornal da Associação do Magistrados sobre a progressão per saltum

DIREITO À PROGRESSÃO PENAL PER SALTUM NA PERSPECTIVA DA LINGUAGEM


FÁBIO ATAÍDE
Juiz de Direito, membro do Grupo de Apoio à Execução, conselheiro da AMARN, professor de Direito Penal/UFRN


Um problema aberto na jurisprudência continua sendo o caso dos apenados que já atingiram tempo suficiente para a progressão ao regime aberto ou livramento condicional, mas ainda continuam em regime fechado.
O sistema inglês ou progressivo de cumprimento de pena adotado pelo ordenamento pátrio estabelece como princípio a existência de um período de prova, com prazo determinado, cujo cumprimento confere direito para a progressão para fase com menor grau de restrição à liberdade, até se chegar finalmente ao livramento condicional.
No entanto, o apenado que está em regime fechado às vezes já possui comprovado comportamento satisfatório e já atingiu os prazos para progressão per saltum para o regime aberto ou livramento. Mesmo assim, considerando o caráter progressivo do cumprimento da pena, a jurisprudência dos tribunais superiores firmou-se contrária à progressão per saltum, impedindo o apenado de sair do regime fechado direto para o aberto (cf. STJ, HC 122.186, 5ª T., Rel. Min. Felix Fischer, j. 17/03/2009; DJE 11/05/2009)”.
Uma vez constatado que o período de prova transcorreu sem atenção às expectativas de progressão, tendo o apenado permanecido em regime fechado além da duração razoável, impõe-se o dever de analisar a sua progressão direta para o regime aberto, sem passar pela fase semiaberta.
À luz da teoria da linguagem, assinala-se que a lei é uma comunicação entre sujeitos indefinidos e, ainda que os homens sejam considerados todos iguais perante a lei, o próprio sistema punitivo referenda a desigualdade, muitas vezes estabelecendo motivos para o não cumprimento das expectativas que deveriam estar ou estão na lei.
Tal estado de coisas acontece com o sistema penitenciário, no qual constantemente apenados pobres e carentes de assistência jurídica pública veem seus direitos de progressão negados e, mesmo assim, sob pretexto de obediência à lei, continuam tendo direitos negados. Os tribunais preferem ignorar que o direito social à progressão ao regime semiaberto deixou de ser concedido a tempo, enquanto entram no ciclo tautológico de negar o regime aberto per saltum porque não se atingiu o estágio progressivo anterior; escondem a realidade de que a fase progressiva anterior não deixou de ser cumprida por falta do próprio Estado. O Estado-Administração falta e, por falta do Estado-Juiz, continua-se faltando!
Dessa forma, a linguagem técnico-jurídica acaba por aceitar a desigualdade penitenciária, agora não por ficção, mas por imposição punitiva expressa de uma interpretação fora da realidade. O significado da lei precisa mudar; adequar-se ao seu tempo. A análise sincrônica da norma remete ao julgamento do texto legal num determinado tempo e espaço, sem considerar a sua evolução histórica. De fato, impede-se com isso que num mesmo tempo e espaço a palavra tenha significados diferentes. Mesmo assim, ainda é preciso a compreensão diacrônica, que confia o estudo da linguagem na percepção da evolução histórica, fazendo uma adequação do texto à realidade social (CAMARGO, Antonio Luís Chaves. “Tipo Penal e Linguagem”. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 74 e ss).
Miguel Reale não fugiu desta problemática. Explica o jusfilósofo que o conteúdo de uma fonte às vezes é formado de diretrizes normativas imutáveis, válidas para qualquer tempo, como a regra que estabelece a menoridade civil. Por outro lado, o conteúdo da norma pode depender de eventos factuais ou "exigências axiologicas mutáveis, importando em interpretação diversa daquela que estava inicialmente na intenção do legislador ou dos contratantes, projetando-se, desse modo, livremente, no plano da experiência jurídica concreta" (REALE, Miguel. "Fontes e Modelos do Direito: Para um Novo Paradigma Hermenêutico". São Paulo: Saraiva, 2002, p. 22 ).
Aliado à visão diacrônica, leciona Reale que maioria das leis estão sujeitas a mutações históricas, em razão de que a significação necessita de ajustes hermenêuticos às supervenientes conjunturas (ibid, p. 23 ).
Em vários momentos, os tribunais superiores têm promovido interpretações que dão respaldo diacrônico à Lei de Execução Penal. Isto aconteceu, por exemplo, quando o Superior Tribunal de Justiça decidiu que “constitui constrangimento ilegal submeter o apenado a regime mais rigoroso do que aquele para o qual obteve a progressão”, conferindo assim o direito ao regime de prisão domiciliar . O STJ registrou ainda no caso que “se o caótico sistema prisional estatal não possui meios para manter os detentos em estabelecimento apropriado, é de se autorizar, excepcionalmente, que a pena seja cumprida em regime mais benéfico, in casu, o domiciliar” (STJ, HC 123.468, 5ª T., Rel. Min. Felix Fischer, j. 16/04/2009; DJE 01/06/2009).
Embora a Lei de Execução Penal admita a prisão domiciliar apenas em hipótese de regime aberto, os tribunais aceitam esta forma de prisão mesmo em regimes mais severos do que o aberto. Guardando o mesmo grau de reflexão, é injustificável negar o direito à progressão per saltum para o regime aberto, sob o argumento de que o apenado não passou anteriormente pelo regime semiaberto, quando se sabe que esta circunstância prévia mais aconteceu por falta do serviço estatal e menos por fato imputado ao apenado.
A orientação jurisprudencial predominante revela a faceta oculta do controle social, moldado para disciplinar indivíduos. O discurso de quem nega a progressão per saltum afirma o monopólio da coerção sobre o indivíduo e, sob o pálio do consenso, mostra como o poder se reduz a uma linguagem mal-acabada de controle, obtida por meio da manipulação do texto legal (cf. WARAT, Luis Alberto. "O Direito e sua Linguagem". 2ª ed., Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 18).
Quando Goffman estudou as instituições de controle, dentre as quais a prisão, constatou que a vida do preso está plasmada por um sistema sancionador permanente, que estabelece a afirmação do domínio nos mínimos detalhes. Dessa forma, quando um prisioneiro pede algo a um agente do Estado corre o risco de ser logo repreendido com uma advertência para ter que cumprir previamente um ritual de submissão, tendo que, v.g., simplesmente pedir “por favor”. O ritual em primeiro lugar; não o direito. O indivíduo não consegue assim equilibrar suas necessidades frente ao sistema de sanções que lhe disseca a personalidade lentamente (GOFFMAN, Erving. "Manicômios, Prisões e Conventos". Trad. Dante Moreira Leite, São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 43).
Desse mesmo modo se encontra quem cumpre pena em regime fechado além da duração razoável, sem que tenha direito à progressão per saltum para o regime aberto. Ainda que a jurisprudência insista em empregar o sistema progressivo para dificultar o acesso à liberdade não-gradual, será útil reconhecer o que ocorre na realidade carcerária e entender este princípio como meio de justiça, não como uma sanção a quem deixou de ter um direito reconhecido por falta alheia. Será que teremos que pedir por favor para que a jurisprudência reflita esta questão?

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom! Já tinha lido algo em CAPEZ, mas este artigo foi bem esclarecedor. Particularmente acredito que, ante a inércia do Estado ou impossibilidade de proporcionar o correto cumprimento de pena (e falo aqui não só em estabelecimentos penais, como na própria individualização e outros princípios criminais); deve-se admitir a progressão "per saltum". De outra forma, ele estaria cumprindo um regime mais rigoroso quando lhe seria cabível passar para uma outra fase; ele não pode "pagar" pelo carência do Estado. Além de ser uma pena injusta e desproporcional, é cruel e fere de morte os princípios constitucionais.

Rau Ferreira
Blog: A Estética do Direito
http://aesteticadodireito.blogspot.com