sábado, 8 de novembro de 2008

Uma carta de despedida. Sapucaia pindura a toga



O Desembargador deixou a toga. Leva consigo um pouco da esperança de um judiciário forte. Fica o exemplo.
Segue abaixo a sua carta-despedida:

Toga pendurada

Gavetas esvaziadas, missão cumprida, consciência leve, após mais de 37 anos de judicatura eis-me diante da toga pendurada por imposição constitucional. Contemplando-a, sinto um misto de boas e más recordações; saudades de terra e gente que me acolheram temporariamente; memórias de lutas e sacrifícios que me fortaleceram o caráter e a vontade férrea de tentar ser justo e não me desgarrar do compromisso formal celebrado no distante 8 de março de 1971.

Amarrotada pelo tempo, ostentando a sua negritude com o torçal vermelho e os punhos de renda, orgulho-me de tê-la vestido por mais de três décadas sem jamais manchá-la ou macular-lhe a pudicícia.

Paramentado por ela, eu me sentia no dever de agir com retidão, com altivez, e em momento algum eu a exibi na tentativa de obter vantagens ou explorá-la em interesses mesquinhos. Tive-a sempre como uma veste sagrada, que me exigia conduta sacerdotal no exercício do cargo. Foi ela que me resguardou durante esses anos, evitando-me ser encharcado pelas chuvas finas ou tempestuosas que poderiam cair das nuvens da improbidade.

É esta a toga que agora vejo pendurada, longe do vaivém dos processos, dos debates ou das sentenças e decisões monocráticas.

Ao desvestir-me da toga que agora vejo imóvel, ficamos os dois a nos perguntar se valeu a pena percorrer os caminhos ásperos que ambos trilhamos – eu procurando respeitá-la e ela me dando o orgulho de servir-me de agasalho. E a resposta, numa harmonia cúmplice e silenciosa, foi positiva.

No terreno do Poder Judiciário eu não fui mais do que um simples lavrador que, fazendo da caneta a minha enxada, rocei, encoivarei, lavrei e procurei espalhar sementes que poderão germinar em forma de alimentos que irão saciar a fome de justiça de muitos, principalmente daqueles marginalizados pela sorte. As sementes foram bem selecionadas, retiradas dos invólucros dos códigos e às vezes do coração, sempre esperançoso de que não fossem distribuídas aos que realmente delas não merecessem se beneficiar.

Nesta partida uma tristeza se apodera de mim, em razão de desmontar uma equipe de assessores, fiéis e competentes, que assimilaram com muita lucidez a minha filosofia de pensar e de agir. É duro ter de demolir uma obra bem construída, sabendo que ela poderia ser bastante útil a outros hóspedes do TJ, onde alguns pensam mais em si próprios do que nos habitantes sociais que esperam pacientemente por julgamentos rápidos e imparciais.

Ao entocar-me na vida humilde e simples, de onde nunca me afastei, apesar das conquistas sociais alcançadas – que nunca me subiram à cabeça, nem ornamentaram a minha vaidade –, faço-o com a tranqüilidade de quem nunca traiu a consciência de magistrado.

Agradeço as homenagens que me foram prestadas pelo Tribunal de Justiça de Alagoas e pelo Tribunal Regional Eleitoral; pela Associação dos Magistrados de Alagoas e pela Procuradoria Geral de Justiça; pela Polícia Federal e pelo 59º BIM; pela Igreja Católica, pelo Movimento Social contra o Crime e a Corrupção e pela sociedade como um todo, sem esquecer a homenagem diuturna que me presta a Marly, esposa que nunca me faltou e nem há de faltar nunca.

Despeço-me da magistratura enferrujado fisicamente, mas com a alma e a consciência inoxidadas. Curvo-me agora diante da toga pendurada que, em silêncio, parece agradecer-me por não havê-la desrespeitado em nenhum momento, enquanto eu lhe agradeço humildemente por ter-me abrigado com tanta honra durante 37 anos, 3 meses e 4 dias.


ANTONIO SAPUCAIA
Desembargador recém-aposentado, ex-presidente do Tribunal Regional Eleitoral de Alagoas




Sobre Sapucaia, já escrevi a seguinte postagem:

A gente precisa ser mesmo é muito “Marshall”, como Sapucaia

Juiz precisa ser mesmo é muito “Marshall”, como Sapucaia

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