sexta-feira, 19 de setembro de 2008

UM ESTUDO A PARTIR DO CASO DA IGREJA UNIVERSAL

8 05 2008
Publiquei no Boletim do IBCCRIM o seguinte artigo, que toma como referência temática inicial um caso envolvendo a Igreja Universal. Segue o artigo:

O PROCESSO COMO PENA


Fábio Wellington Ataíde AlvesJuiz de Direito/RNMestrando em Direito(www.fabioataide3.blog.digi.com.br)

O aniversário de trinta anos da Igreja Universal do Reino de Deus tem sido motivo para a realização de várias reportagens jornalísticas sobre como se deu a sua edificação. Contudo, o momento não tem sido apenas para evocações no plano espiritual. A divulgação de matérias com ângulos contrários aos interesses da Igreja incitou a formação um movimento de retaliação aos principais meios de comunicação jornalística do país. O mais notável é que este movimento se utiliza do processo judicial como mecanismo aflitivo. Assim, como noticiou o editorial da Folha de São Paulo de 19 de fevereiro de 2008, fiéis promoveram inúmeras ações judiciais em várias localidades, para fazer com que os órgãos da imprensa abram mão da linha editorial mais crítica.

O episódio revela de maneira evidente que o processo judicial pode ser empregado como pena. Ainda que se mova em torno do interesse público, o processo está em condições de engendrar para a obtenção de fins alheios ao seu caráter instrumental. Deste modo é que se torna possível utilizá-lo com o objetivo de repreender, independentemente da resolução final.

Não estamos tratando aqui do uso fraudulento do processo, mas de seu uso (aparentemente) legítimo para infligir um mal, cujos efeitos se tornam mais intensos conforme se retarda a solução do caso. Ou seja, isto significa dizer que quanto mais durar o processo e menos favoráveis as chances defensivas, mais infalível tornar-se-á o seu caráter punitivo.

De fato, o processo como pena não atende aos interesses públicos, mas se encaminha para a realização da forma renovada de vingança privada. Tal reflexão tanto se aplica ao caso da Igreja Universal, como também pode ter sede em qualquer processo penal. E é neste tipo de processo que o cunho punitivo se designa de maneira mais drástica, porque, ao contrário do processo civil, o órgão acusador se sobressai em muitas vantagens sobre o acusado. O próprio modelo legislativo interpõe institutos (pré-)processuais carregados de conteúdos punitivos, como a transação penal ou a suspensão condicional do processo, sem olvidar do emprego das prisões cautelares.
Afinal de contas, o processo penal é uma manifestação concreta do poder punitivo e, nas palavras de Carnelutti (1879–1965), representa um mal, muitas vezes mais enérgico do que o mal proporcionado pela pena[1]. De qualquer maneira, a publicidade do processo restaura o delito à memória, razão pela qual o jurista italiano observa que o juízo penal possui um caráter punitivo e até educativo[2].

Não há dúvida de que o processo pode implicar um mal, notadamente quando cria para o acusado o risco de medidas restritivas de bens, em função de que não podemos hesitar diante da íntima relação entre pena e processo. Por isto, o Tribunal Constitucional alemão entendeu que devem ser asseguradas à prisão cautelar as garantias próprias da pena, servindo o princípio da culpabilidade de referência para todas as medidas que fossem semelhantes à pena[3].
Deste modo, um processo que extrapola a duração razoável guarda em si um significado punitivo, principalmente quando estamos tratando de processos públicos. Logo, se conclui que, seja qual for o equilíbrio que se estabeleça entre a publicidade e a intimidade, o certo é que a publicidade dá ênfase ao processo como pena.
A liberdade de imprensa – que pertence ao mesmo substrato iluminista de onde provém o princípio da publicidade – reforça o caráter punitivo do processo, porque a notícia do fato ilícito não pode ser simplesmente proibida. Em linhas gerais, os formadores de opinião não têm o dever de reserva para com o caso levado a juízo ou, melhor dizendo, as entidades privadas não estão impedidas de tecer comentários acerca da culpabilidade de quem responde a um processo[4]. No caso específico da Igreja Universal, vê-se que foi a própria liberdade de expressão utilizada como alvo das diversas ações judiciais, fazendo do processo um instrumento para ofender direitos fundamentais.
A questão se agrava em modelos jurídicos que admitem demandas prolongadas, nutridas indefinidamente por um sistema recursal rococó, como o brasileiro. Não é o resultado do processo que se torna importante, mas a própria demora na prestação jurisdicional um fator de punição.
Concretamente, não se pode ignorar que os princípios penais materiais agem como filtros[5], impedindo que casos desnecessários tenham acesso ao processo. Mas, além disso, o mais importante é saber que a duração razoável pode tornar-se o mecanismo mais eficaz para conter o processo como pena, sendo capaz de estabelecer um limite temporal para a solução do litígio, amenizando os efeitos colaterais decorrentes do excesso indevido de duração.
Por isto, doutrina e jurisprudência empenham-se para encontrar mecanismos para a efetivação do direito à razoável duração do processo. Assim, pioneiramente, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul[6] firmou que a demora excessiva do processo pode ser compensada quando da aplicação da pena, considerando-se o atraso como uma atenuante genérica (art. 66, CP).
Noutra decisão, o citado Tribunal foi mais longe: entendeu que em função da inexistência de um limite máximo para a duração do processo, ficou a critério do julgador a definição, caso a caso, da ocorrência do excesso de prazo e as suas conseqüências. Assim, na apreciação de uma ação penal que tramitou por mais de cinco anos, o Relator Nereu José Giacomolli considerou que a demora processual interferiu no conteúdo probatório, afastando a lisura dos depoimentos e, por conseqüência, justificando a absolvição dos acusados[7].
No campo doutrinário, Aury Lopes Jr. e Gustavo Henrique Badaró defendem que o excesso do prazo motive o perdão judicial nas hipóteses legalmente previstas, muito embora também reconheçam que a melhor solução seria a extinção do processo[8]. Igualmente preocupado com o prolongamento das prisões preventivas, Gustavo Plat mostra-se favorável ao abrandamento do regime da prisão preventiva, admitindo, inclusive, a extensão das normas penitenciárias aos presos provisórios, de modo que lhes seja assegurado, por exemplo, o direito à saída temporária para trabalhar[9].
A respeito do ponto em causa, não basta apenas considerar que o poder punitivo se limita pelos princípios penais materiais. As garantias processuais, notadamente a de duração razoável do processo, também impõem bloqueios ao processo-pena.

[1] CARNELUTTI, Francesco. “El Problema de la Pena”. Trad. Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-America, 1956, p. 58.

[2] Ibid , p. 59.

[3] Ibid, ibidem .

[4] IGNACIO ANITUA, Gabriel. “Justicia Penal Pública: un estudio a partir del principio de publicidad de los juicios penales”. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2003, p. 289.

[5] Lembro aqui do princípio da proporcionalidade; da insignificância; da intervenção mínima; da fragmentariedade; da subsidiariedade; da ofensividade etc.

[6] BRASIL. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Crime n. 70.007.100.902, 5ª C. Crim., Rel. Luís Gonzaga da Silva Moura, j. 17/12/03, Comarca de Gravataí. Sobre o precedente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, cf. LOPES JR, Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique.“Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável”. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 80.

[7] BRASIL. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Ap. n. 70.019.476.498, j. 14/06/07,Boletim IBCCRIM n. 180, novembro de 2007.

[8] Op. cit., pp. 124 e 125. Samuel Miranda Arruda afirma que “no crime, há mesmo quem vislumbre a possibilidade de tomar o descumprimento do direito como critério a justificar a diminuição de pena ou perdão judicial” ( “O Direito Fundamental à Razoável Duração do Processo”. Brasília: Brasília Jurídica, 2006, p. 266).

[9] Defensa Pública en la Etapa de Ejecuclón Penal y Garantías durantela Prisión Preventiva. “Talleres Regionales: Foro Internacional: Justicia y Derechos Humanos”. Lima: Ceas, 1999, p. 229-240.

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