quinta-feira, 14 de junho de 2012

ARTIGO: Juízes fracos ou fracassados? Uma reflexão sobre dois personagens sem medo de si e incrivelmente intolerantes um para com o outro. Ambos, disfarçados de cidadãos ou duplamente enganados...


Juízes fracos ou fracassados?

Fábio Ataíde
Juiz de Direito e Conselheiro da AMARN
Artigo publicado no AMARN Informa n. 50, Natal-RN, abr-jun/2012, p. 10-11

Por que o juiz dá sinais de ter desaprendido o que devia saber? Por que se faz parecer uma manada de elefantes caindo em precipício? Está mais arrogante ou apenas exigente com o cumprimento de suas prerrogativas? Tornou-se um fraco ou um fracassado?
Se tivesse um momento-espaço para demarcar um princípio de resposta a qualquer dessas questões, escolheria a entrevista do Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros ao programa Roda Viva de 13 de fevereiro de 2012. Imprensa e magistratura frente a frente. A seu modo, o espetáculo não teve cautelas ao colocar diante das câmeras dois personagens sem medo de si e incrivelmente intolerantes um para com o outro. Ambos, disfarçados de cidadãos ou duplamente enganados, esperavam ser tratados como eles dizem tratar o público.
Nessa relação contraditória, descobrimos que o capital de um custa mais do que o do outro. Sem dúvida, o papel-moeda da imprensa está mais cotado, não exclusivamente por causas dos avanços que ocorreram nos últimos tempos, mas ainda por razões que se devem aos próprios juízes, convertidos rapidamente a “bodes expiatórios” (René Girard), justamente em função de construções midiáticas generalistas que desconhecem as relações de poder processadas dramaticamente no campo judiciário.
No passado, construções conceituais generalizadoras promoveram os juízes a superiores, diferentes e donos da verdade, deixando-os muito ocupados com o impulso da própria liberdade. Isso pareceu aceitável, enquanto foram vistos como membros de um campo formado por agentes preocupados com a construção da cidadania e unidos em torno de sentimentos sociais inquestionáveis.
É um fato claro que a pureza do juiz foi levada com pouco esforço pelas tintas dos diversos casos noticiados envolvendo o Judiciário. Em muito pouco tempo presenciamos o fim da candura judicial. Dessa forma abriu-se o espaço para a descoberta de um Poder sem causas, igual a todos os outros, historicamente construído sobre os mesmos antiprincípios que levam a crer que alguns de seus agentes fazem como todos os errantes, menos por meio de suas convicções e mais por razões de interesses pessoais.
Neste século, a imagem do juiz resistente, independente, forte para defender o hipossuficiente, deu lugar rapidamente ao juiz fraco perante o forte ou ao juiz forte para proteger a si mesmo. Em poucos anos a magistratura ocupou espaços inacreditáveis, antes apenas preenchidos por quem ela própria condenava.
A virada que se produz transforma a realidade para todos nós. O mais incrível parece saber que a magistratura luta para ter hoje o que disse sempre possuir e, ao que parece, nunca teve. Honra, virtuosidade, coragem, atitude, tudo isso ficou reduzido a um jogo de interesses políticos. Na percepção de Pierre Bourdieu, podemos visualizar o funcionamento do campo judiciário para determinar as lutas de poder travadas internamente.
Historicamente descompromissados com lutas sociais e pessoalmente envolvidos em torno de interesses burgueses, os juízes acabaram por serem expostos a um modelo de controle social que os aprisiona à inércia ou, do lado oposto, os empurra ao ativismo. Fadados assim à fraqueza ou ao fracasso, sofrem com a falta de legitimação sem saber o que fazer. Se permanecerem inertes, como acostumados, reforçam a posição de fragilidade que os levou à deslegitimação. Se optarem pelo ativismo, entregam-se ao fracasso, porque não adequadamente estruturados a promover a efetivação dos direitos por tais caminhos. O velho simplesmente não encontra saída para dar lugar ao novo. Eis o problema.
A nostálgica era dos grandes juízes acabou. Ficou para colunistas de domingo que não têm o que dizer sobre os novos tempos. Se pararmos para pensar, os novos direitos precisam de juízes renovados, capazes de perceber as relações de poder e desconstruir o "coletivo dominador" e que não façam parte dele. Aos juízes resta reconstruir a democracia como direito humano de quarta geração (Bonavides), mas como fazer isso se eles próprios desconhecem a vida democrática? Ainda parece patético descobrir que a chegada dos controles externos não representou a significativa mudança democrática nem tampouco gerou séria discussão sobre temas elementares como eleições diretas para presidentes dos tribunais ou mandato para membros das cortes superiores.
Do lado da mídia – fazendo todas as ressalvas que esta expressão polissêmica merece –, o padrão jornalístico de crítica perde-se diante dos interesses financeiros que dominam o campo, especialmente por causa da conhecida interferência histórica dos grupos políticos e econômicos sobre os principais meios de comunicação de massa. A notícia trava assim uma luta particular com a decisão, em torno do estabelecimento de uma realidade e da construção de uma verdade. Juiz e jornalistas enfrentam seus próprios embates internos, que passam longe do grande público, estes reconhecidamente incapazes de penetrar nas supostas “caixas pretas” de cada campo. A decisão e a notícia não chegam ao consumidor final produzida por agentes neutros, mas já saem contaminadas, depois de passarem por processos complexos que ponderam os interesses e valores no jogo dentro de cada campo por onde se movem, alcançando o consumidor final quase que como uma comunicação de uma ilusão [cf. ROCHA, Álvaro Filipe Oxley da. Criminologia e Teoria Social: Sistema Penal e Mídia em luta por poder simbólico. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.) Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. 2. ed., Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011, p. 51].
 É preciso fixar um mínimo existencial e revigorar o juiz natural. Para quem sangra pela jugular, levar a mão ao pescoço é o mínimo. Não podemos deixar para anteontem o que devíamos fazer ontem, nem tampouco esperar o Salvador de um tempo superado. Na passagem para novas exigências, está o juiz diante de sua decisão mais difícil, tendo que escolher entre conservar um passado que não mais existe ou construir um futuro incerto de e para si mesmo. A solução a este perigoso problema está nas mãos de quem tem necessidade de voltar a influenciar o destino da Nação, deixando de ser o fraco que foi no passado e o fracassado pintado hoje.

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