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Entrevista – René Girard
Entrevista – René Girard
Para o filósofo e historiador francês,
a tendência das multidões é canalizar a violência coletiva em um único
indivíduo
Melissa Antunes de Menezes
“A concepção romântica do desejo é ilusória”, afirma René
Girard, 85, membro da Academia Francesa e professor de Literatura Francesa na
Universidade de Stanford. Sua teoria do desejo mimético indica que entre o
sujeito e o objeto não existe somente o desejo, mas também o modelo, o mediador
do desejo, ou o rival. O conceito de mimesis aqui estabelece o
ponto central da articulação. Desde as sociedades primitivas, o desejo mediado
é o desejo causador dos conflitos. Pela imitação, aprendemos a falar, a andar e
a desejar. E, pela imitação do desejo alheio, competimos e rivalizamos, dando
início a um ciclo de violência, capaz de se atenuar pelo sacrifício, neste
caso, de uma vítima que acaba por aliviar as tensões do coletivo,
reestabelecendo a paz momentânea. Torna-se inevitável, dentro deste
esquema, que também o ciúme e a inveja façam parte da mimesis do
desejo.
Radicado
nos Estados Unidos há mais de 50 anos, Girard estudou o Antigo Testamento sob a
ótica sociológica e vê no cristianismo a primeira religião que consegue
amenizar a violência pelo expediente da crucificação.
Nesta entrevista, concedida com
exclusividade à CULT, o historiador fala sobre alguns dos temas presentes
naquele que é considerado seu mais importante livro, Coisas ocultas
desde a fundação do mundo, publicado originalmente em 1978 e lançado neste
mês pela editora Paz e Terra. Nele, Girard aprofunda, através de diálogos com
dois psiquiatras franceses, suas hipóteses sobre a violência, o desejo e a
representação do sagrado, desenvolvidas a partir de temas de seu livro
anterior, A violência e o sagrado.
CULT – Fala-se muito hoje em violência.
Mas não vivemos uma época em que há maior controle social e cultural da
violência do que em qualquer outro período da história?
René Girard – Temos um
grande controle da violência no que se refere ao local. Entretanto, as pessoas
não estão cientes da violência em si. A mediação externa resolve o problema da
violência de forma imperfeita porque o faz através de uma vítima. Considero que
temos paz no âmbito individual, mas a ameaça está no coletivo. Tanto o rito quanto a proibição somente adiam a
explosão da violência.
Sistemas
religiosos como o cristianismo atuam no sentido de conscientizar sobre o uso da
vítima expiatória. E não existe uso deste mecanismo de forma consciente. O bode
expiatório é inconsciente, ou não é.
Em um nível exponencialmente maior,
estamos lidando hoje com a possibilidade da destruição total, do uso da
violência em termos absolutos, através do crescente desenvolvimento de
tecnologias novas como a nanotecnologia — manipulação de partículas que podem
desencadear reações de potencial altamente destrutivo.
CULT – Assim como Peter Gay, o senhor
afirma que o coletivo é assassino por natureza e não o homem. Poderia explicar?
RG – Penso que o
indivíduo não é assassino em sua natureza e, sim, o coletivo. As descobertas
coletivas são perigosas em vários aspectos do desenvolvimento humano.
A
primeira metade do século 20 foi intensamente bélica. O século 21 traz novos
desafios e preocupações, que são o desenvolvimento científico e as descobertas
para as quais não estamos novamente preparados.
Acredito
que nossa natureza mimética é responsável pela tendência das multidões de
focalizar sua violência em um único indivíduo que se transforme,
arbitrariamente, no bode expiatório de alguma comunidade. A matança unânime de
uma vítima inocente, no passado, pacificava multidões perigosamente perturbadas
e tornou possível sua estabilização.
Acredito
que o bode expiatório tem um papel essencial na criação e na perpetuação de
religiões arcaicas. As culturas arcaicas foram
essencialmente a repetição de sacrifícios religiosos, evacuando a violência
interna através destas vítimas substitutas. Isto não significa que eu recomende
o mecanismo do bode expiatório para a manutenção da paz dentro das comunidades.
Uma vez que o ciclo do sacrifício é compreendido, ele perde sua eficácia, como
uma arma contra a violência interna.
Os deuses arcaicos, na minha opinião,
são vítimas da matança daqueles que põem fim à violência disruptiva e são
considerados divindades da violência e da paz.
CULT – Thomas Mann se perguntava: “Não
é a paz um elemento de corrupção civil e a guerra purificação, liberação, uma
enorme esperança?” O rito sacrificial – o uso da violência para apaziguar
ânimos – vem sendo há muito tempo discutido pela literatura universal?
RG – Não concordo que a guerra traga purificação. Na
literatura há comentários sobre o comportamento mimético tanto do desejo,
quanto da violência. O rito sacrificial é arcaico, é gênese da violência
humana. O uso do bode expiatório está presente na literatura, como em
Shakespeare, por exemplo.
Esta declaração do jovem Thomas Mann
reflete a atitude à época do início da Primeira Guerra e foi compartilhada por
muitos ingleses e franceses. Este espírito durou até, aproximadamente, 1916.
Estas opiniões sofreram mudanças extremas devido às terríveis perdas da guerra
e do progressivo aumento do poder militar.
Mann era muito comprometido e leal às
ideias antinazistas e perdeu sua crença no poder enobrecedor do aparato de
guerra. Concordo com o
Thomas Mann mais velho. No futuro, ou não haverá nenhuma guerra como aquelas do
século 20, ou nós veremos a destruição da civilização.
CULT – Em Coisas ocultas desde
a fundação do mundo, o senhor diz que os ritos sacrificiais perderam força
sob influência do judaísmo e do cristianismo. No que concerne à relação entre
Israel e Palestina, existe o uso do mecanismo sacrificial?
RG – Devemos tentar ver todos os conflitos e guerras que
temos hoje sob a ótica do mecanismo mimético. Mimesis tanto do
desejo, quanto do uso da violência. No cristianismo, quebra-se o ciclo. Cristo oferece a outra face e
redime seus algozes. Não busca vingança, não derrama mais sangue. É pela cruz,
pelo amor, que se dá a interrupção do ciclo de violência. O cristianismo
mostrou que a sociedade humana produzia vítimas únicas. A crucificação
desobstruiu o caminho para o entendimento do processo da vítima expiatória.
CULT – Mimetizamos o desejo e também a
violência? Ou, ao mimetizar o desejo, criamos a violência?
RG – Sim, as duas sentenças estão corretas. Criamos rivalidade na mimesis,
competindo pelo mesmo objeto, desejando os desejos do nosso modelo, o outro.
Esta admiração velada do prestígio do outro, do que o outro possui, é a
constatação clara de ser insuficiente. Constatação esta muito angustiante e
incômoda. Já o modelo, o intermediário, não é passivo dentro deste mecanismo.
Pelo contrário, faz de tudo para provocar o desejo do outro sobre seu objeto.
Pois, que valor tem o objeto, senão pelo desejo de outrem? Este é o ciclo
infernal do desejo. E também dos conflitos.
CULT – Para Freud, o mal-estar do homem moderno ocorreria
devido à repressão de sua violência natural, que gera outros problemas de ordem
interna e também conflitos sociais de diferentes naturezas. A teoria de Freud
não vem de encontro à sua?
RG
– Sim,
há uma oposição entre as ideias de Freud e as minhas. Muitos diriam que tanto
na repressão da libido em Freud, quanto no uso do mecanismo de vítimas
arbitrárias para aplacar explosões, reside uma ideia similar. Mas não concordo
com Freud e com sua teoria de que tudo está relacionado ao desejo sexual. Freud justifica todo comportamento humano
baseando-se nesta ideia. Ele foi o primeiro a ver a profunda influência que uma
pessoa tem sobre a outra. Mas discordo de sua visão de que a influência dos
pais delinearia a personalidade. A visão de Freud ficou muito restrita ao período em que viveu, no
qual predominava um certo tipo de estrutura familiar.
CULT – E quanto àqueles que somente
desejam o impossível? Ou, como disse Kierkegaard, “cometem o pecado capital de
não querer nada profunda e autenticamente”?
RG – Minhas ideias estão bem mais próximas às de
Kierkegaard do que foi visto nas entrevistas que dei e nos artigos escritos
sobre minha obra. Para mim, o desejo do impossível e o não-desejo ainda
estariam de acordo com mecanismos miméticos.
Kierkegaard
constatou, em sua análise dos três estágios do ser, a presença de um homem que
se escora no outro. Possuindo um vazio existencial aterrador, ele procura na
observação do outro, do que o outro possui, do que o outro aparenta, uma forma
de saber quem é e como sentir-se pleno. Portanto, para ser ele mesmo, este
homem necessita tomar conhecimento do outro, como no mecanismo do desejo
mimético, onde este desejo somente se faz possível pela intermediação do que é
e deseja um outro.
FONTE
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