HC N.
104.410-RS
RELATOR:
MIN. GILMAR MENDES
HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL
DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. (A)TIPICIDADE DA CONDUTA. CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS PENAIS. MANDATOS CONSTITUCIONAIS DE CRIMINALIZAÇÃO
E MODELO EXIGENTE DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS EM MATÉRIA PENAL. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.
LEGITIMIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE ARMA DESMUNICIADA. ORDEM DENEGADA.
1. CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS PENAIS. 1.1. Mandatos Constitucionais de
Criminalização: A Constituição de
1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam
direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas (CF, art. 5º,
XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas normas é
possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os
bens e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser considerados
apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando
também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os
direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote),
como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou
imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandatos constitucionais de
criminalização, portanto, impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento,
o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de
excesso e como proibição de proteção insuficiente. 1.2. Modelo
exigente de controle de constitucionalidade das leis em matéria penal, baseado
em níveis de intensidade: Podem ser distinguidos 3 (três) níveis ou graus
de intensidade do controle de constitucionalidade de leis penais, consoante as
diretrizes elaboradas pela doutrina e jurisprudência constitucional alemã: a)
controle de evidência (Evidenzkontrolle); b) controle de
sustentabilidade ou justificabilidade (Vertretbarkeitskontrolle); c)
controle material de intensidade (intensivierten inhaltlichen Kontrolle).
O Tribunal deve sempre levar em conta que a Constituição confere ao legislador
amplas margens de ação para eleger os bens jurídicos penais e avaliar as
medidas adequadas e necessárias para a efetiva proteção desses bens. Porém, uma
vez que se ateste que as medidas legislativas adotadas transbordam os limites
impostos pela Constituição – o que poderá ser verificado com base no princípio
da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot) e como
proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) –, deverá o Tribunal
exercer um rígido controle sobre a atividade legislativa, declarando a
inconstitucionalidade de leis penais transgressoras de princípios
constitucionais.
2. CRIMES DE PERIGO
ABSTRATO. PORTE DE ARMA. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALDIADE. A Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento) tipifica
o porte de arma como crime de perigo abstrato. De acordo com a lei, constituem
crimes as meras condutas de possuir, deter, portar, adquirir, fornecer,
receber, ter em depósito, transportar, ceder, emprestar, remeter, empregar,
manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo. Nessa espécie de delito, o
legislador penal não toma como pressuposto da criminalização a lesão ou o
perigo de lesão concreta a determinado bem jurídico. Baseado em dados
empíricos, o legislador seleciona grupos ou classes de ações que geralmente
levam consigo o indesejado perigo ao bem jurídico. A criação de crimes de
perigo abstrato não representa, por si só, comportamento inconstitucional por
parte do legislador penal. A tipificação de condutas que geram perigo em
abstrato, muitas vezes, acaba sendo a melhor alternativa ou a medida mais
eficaz para a proteção de bens jurídico-penais supraindividuais ou de caráter
coletivo, como, por exemplo, o meio ambiente, a saúde etc. Portanto, pode o
legislador, dentro de suas amplas margens de avaliação e de decisão, definir
quais as medidas mais adequadas e necessárias para a efetiva proteção de
determinado bem jurídico, o que lhe permite escolher espécies de tipificação
próprias de um direito penal preventivo. Apenas a atividade legislativa que,
nessa hipótese, transborde os limites da proporcionalidade, poderá ser tachada
de inconstitucional.
3. LEGITIMIDADE DA
CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE ARMA. Há,
no contexto empírico legitimador da veiculação da norma, aparente lesividade da
conduta, porquanto se tutela a segurança pública (art. 6º e 144, CF) e
indiretamente a vida, a liberdade, a integridade física e psíquica do
indivíduo etc. Há inequívoco interesse público e social na proscrição da
conduta. É que a arma de fogo, diferentemente de outros objetos e artefatos
(faca, vidro etc.) tem, inerente à sua natureza, a característica da
lesividade. A danosidade é intrínseca ao objeto. A questão, portanto, de
possíveis injustiças pontuais, de absoluta ausência de significado lesivo deve
ser aferida concretamente e não em linha diretiva de ilegitimidade normativa.
4. ORDEM DENEGADA.
VEJA ESTE OUTRO CASO:
VEJA ESTE OUTRO CASO:
Porte ilegal de
arma de fogo e ausência de munição - 3
Em conclusão, a 2ª
Turma, por maioria, denegou habeas corpus no qual denunciado pela
suposta prática do crime de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido
pleiteava o trancamento de ação penal — v. Informativos 601 e 612. Entendeu-se
que, após a entrada em vigor da Lei 10.826/2003, a hipótese seria de crime de
perigo abstrato, para cuja caracterização não importaria o resultado concreto
da ação. Aduziu-se que a referida lei, além de tipificar o simples porte de
munição, não exigiria para a configuração do crime sob análise que a arma
estivesse municiada, de acordo com que se extrairia da redação do art. 14
daquele diploma legal. Avaliou-se, ainda,
que o trancamento de ação penal seria medida reservada a situações
excepcionais, como a manifesta atipicidade da conduta, a presença de causa de
extinção da punibilidade do paciente ou a ausência de indícios mínimos de
autoria e materialidade delitivas, inocorrentes na espécie. Para evitar
supressão de instância, não se conheceu da alegação, não apreciada pelo STJ nem
pelo tribunal estadual, de que o paciente fora autorizado, por presidente da
Corte estadual, a portar arma, a qual só não estaria registrada em seu nome
porque, à época dos fatos, ainda vigoraria o prazo legal para o devido
registro. Não obstante, explicitou-se que esse prazo, espécie de vacatio
legis indireta, teria sido destinado aos proprietários e possuidores de
arma de fogo (Lei 10.826/2003, art. 12), e não àqueles acusados de porte ilegal
(art. 14) . Vencido o Min. Celso de Mello, que concedia a ordem por entender
destituída de tipicidade penal a conduta imputada ao paciente.
HC
96759/CE, rel. Min. Joaquim Barbosa, 28.2.2012.(HC-96759)
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