O filme está aparentemente vazio, mas há uma profusão de ideias sob seus personagens (seguem abaixo duas críticas sobre a obra).
Além do que disse Eduardo Carli, vejo que Violência Gratuita segue no mesmo caminho de Laranja Mecânica, contudo de forma muito mais nervosa e direta. O espectador encontra-se com a violência em si, sem justificativas, o que parece próprio para compreender a transgressão como algo normal e não patológico. Mesmo assim, somos levados a perceber justamente o contrário; compreender "o patológico" na violenta sociedade de hoje. De fato, encontramos aqui o tema "violência juvenil" em poucas palavras.
Em um artigo intitulado "Juventude, contemporaneidade e comportamento agressivo" (recomendo leitura), Gabriel José Chittó Gauer e outros abordam o tema da agressividade juvenil sob a ótica de seu caráter não patológico. Neste aspecto, o desequilíbrio emocional juvenil transborda diante das promessas contemporâneas. A violência ocorre dessa forma como frustração; uma promessa incapaz de realizar para um sujeito sem identidade. Está aí a questão para compreender Violência Gratuita.
CRÍTICA DE VEJA
Vamos à crítica de Eduardo Carli, melhor do que a de VEJA
VIOLÊNCIA GRATUITA
de Michael Haneke
(Funny Games, Áustria/França, 1997)
My films are intended as polemical statements against the American 'barrel down' cinema and its dis-empowerment of the spectator. They are an appeal for a cinema of insistent questions instead of false (because too quick) answers, for clarifying distance in place of violating closeness, for provocation and dialogue instead of consumption and consensus.
– Michael Haneke, “Film as Catharsis”
É fácil desprezar “Violência Gratuita” como um filme absurdamente sádico e perverso - que não faz nada além de nos colocar como observadores em uma sala de tortura onde a violência é, de fato, gratuita. Poucos filmes são mais fáceis de odiar. À primeira vista, o filme de Michael Haneke parece uma daquelas coisas feitas por artistas diabólicos que se divertem fazendo o espectador sofrer – e por nada. Em “Dançando No Escuro” (de Von Trier) ou “A Paixão de Joana D’Arc” (de Dreyer), por exemplo, o sofrimento que é infligido aos protagonistas,, apesar de gigantesco, tem seu sentido e é um meio para a transmissão de uma mensagem; mas em “Violência Gratuita” não parece haver mensagem alguma. O filme parece ser sofrimento bruto, sem remissão, sem sentido: algo que vai até as beiras do niilismo.
E surpreende que esse seja um filme de Michael Haneke, um cara inteligentíssimo, formado em filosofia, que dá algumas das melhores e mais instigantes entrevistas que eu já vi um cineasta dar e que já cometeu obras-primas como “Caché” e “A Professora de Piano”... Haneke não parece ser um o tipo de diretor interessado em apenas exibir na tela um amontoado de crueldades arbitrárias – e é isso que “Violência Gratuita” parece ser, à primeira vista... Uma dupla de bandidos invade a casa de uma família rica num fim-de-semana, sem nenhum desejo de roubar nada, e simplesmente se põem a brincar de tortura pelo simples prazer de reduzir a pó a vida pacata de uma família feliz. Que isso aconteça no mundo, é até possível. Não há inúmeras famílias destruídas de uma hora pra outra por um assalto que acaba em morte, por uma bala perdida, por um atropelamento surpresa? Pois bem: “Violência Gratuita” até poderia ser visto como um filme que mostra, e com uma crueza brutal, o quanto nossas vidas são frágeis e o quanto tudo pode ser destruído num instante pela loucura dos outros homens. Viver é perigoso.
Mas, depois de muito pensar sobre o que vi, e depois de ter visto outros filmes do Haneke e lido algumas de suas entrevistas, ficou claro que a coisa simplesmente não podia ser tão simples assim e que há muito mais coisas rolando em “Violência Gratuita” do que parece – e o maestro desse espetáculo sabe muito bem o que está fazendo e que objetivos pretende atingir.
Em primeiro lugar, “Violência Gratuita” é uma óbvia tentativa de polemizar e levantar discussões sobre a questão da violência no cinema – e bem menos contraditório do que o “Assassinos Por Natureza”, do Oliver Stone, que pra mim é um filme que atira no próprio pé (ao criticar a violência midiática estilizada e SER um filme lotado com o mesmo tipo de conteúdo que critica). Haneke deixou claro em suas entrevistas que sua preocupação principal era realizar um filme onde a violência não fosse consumível, como é moda nos últimos tempos - estamos vendo se multiplicarem filmes (Kill Bill, Sin City, Irreversível, Oldboy...) em que a violência é estilizada e vendida como a coisa mais cool e adorável do universo. Haneke se revolta frente à enxurrada de filmes que dão violência ao espectador como se fosse algodão-doce ou coca-cola; e se revolta contra os espectadores que se deliciam e vão ao êxtase engolindo com os olhos as cachoeiras de sangue artificial e de cadáveres... vejam o que acontece quando as pessoas assistem Kill Bill, por exemplo: elas ADORAM cada ato de violência, e adoram mais e mais na proporção direta do grau de crueldade e de brutalidade envolvidos no processo.
Contra o quê Haneke fez um filme onde é de fato impossível para o espectador SENTIR PRAZER com a violência que vê (a não ser que seja uma pessoa de personalidade indizivelmente sádica, o que é sempre uma exceção); a violência aqui é reconhecida e sentida pelo que realmente é: algo de revoltante, de brutal, de injustificável. Frente aos atos brutais cometidos em “Violência Gratuita” (que nem são mostrados explicitamente), nossa reação é aquela que, segundo a ética de Haneke, deveria ser a nossa reação frente a qualquer tipo de violência: de repulsa, de nojo, de afastamento. Essa violência não está lá para nos dar prazer, como é o caso nos filmes de Tarantino, por exemplo, e em tantos outros; está lá para nos horrorizar e nos enojar. E não é essa a reação que merece a violência? E o que devemos não é mesmo ODIAR e FICAR COM NOJO desses personagens que nada fazem na tela além de fazer o sangue jorrar, ao invés de tratá-los como heróis ultra-cool?
E agora me parece bem claro que na verdade “Violência Gratuita” é um filme que se coloca como objetivo primordial brincar com o espectador: esse é um filme que está aí para nos provocar, para frustrar todas as nossas expectativas, para mexer com os nossos sentimentos. Os funny games que servem como título original talvez nem sejam referência aos jogos sádicos de tortura e de humilhação que os bandidos perpetram contra a pobre família burguesa: talvez são os próprios jogos que o filme joga com o espectador. Me explico.
Tudo em “Violência Gratuita” me parece ter sido feito pensando nas reações e nos desejos do público: é um filme que de certa maneira se engaja num ATENTADO contra a mentalidade tradicional de uma pessoa que vai ao cinema. Por que é que vamos ao cinema e alugamos filmes? A resposta mais comum, a resposta das pessoas normal (e crítico de cinema, como todos sabem, nunca vai ser uma pessoa normal :P), é aquela: “pra curtir, ué! Pra curtir !” E é bem isso: o princípio de prazer é quem comanda. Claro que a maioria de nós vai ao cinema em busca do prazer, da diversão, dos “bons sentimentos”, dos clímaxes emocionais que o filme pode nos fazer sentir, dos elevados pensamentos que o filme pode nos fazer pensar, dos ensinamentos que ele pode nos transmitir... Quase todos os filmes da história da humanidade possuem finais felizes simplesmente pois quase todos nós queremos finais felizes! O cinema muitas vezes é feito sob medida pra nos consolar das injustiças e dos absurdos da vida: naquele lindo universo paralelo, os bons sofrem bastante, com certeza, como na vida, mas no fim de tudo acabam por prevalecer sobre os maus; a injustiça é punida; a generosidade é recompensada; os esforços do herói nunca são em vão, pois conduzem inevitavelmente à vitória; as canalhices do vilão nunca permanecem impunes por muito tempo e por fim ele sempre ganha a punição que merece... Claro que isso não é uma regra geral, mas todo mundo sabe: em filmes comerciais, final infeliz é sempre uma exceção.
Hanneke vai subverter radicalmente esse tipo de dogma cinematográfico ao fazer um filme que não nos dá nenhum consolo e que nos coloca frente a frente com personagens realmente Malvados (com M maiúsculo), não nos dando o prazer de vê-los vencidos... Não se retorna ao passado dos personagens para tentar explicar a gênese dessas personalidades cruéis – diferentemente do que ocorre no “A Professora de Piano”, que mostra bem o percurso que leva à protagonista à crueldade e à loucura. Também não coloca na boca de nenhum deles qualquerjustificação racional para os atos deles (penso em algo parecido com aquele discurso do assassino do “Festim Diabólico” do Hitchcock, por exemplo, ou do serial killer de “Seven”, do Fincher) – os atos deles acabam mesmo parecendo completamente irracionais e absurdos.
Tudo se passa num clima de estrito realismo, mas o diretor se esforça, vez ou outra, porquebrar o transe de quem assiste. Quando o bandidão chefe se vira para a câmera e se dirige diretamente para o espectador, seja dando uma piscadela de olho, seja comentando sobre o desenvolvimento do enredo, ele destrói a magia do cinema. É como se nos desse um beliscão no braço e berrasse: “Ei, cara, acorda! Isso é tudo mentirinha!” Pois é comum nos esquecermos que estamos frente à mentira quando estamos no cinema: tudo é tão verossímil, tão parecido com o mundo lá fora, tão acreditável, que é quase inevitável que nós olhemos através daquela janela indiscreta com a ilusão de estar vendo pessoas reais e suas vidas reais. O realismo de Hanneke conduz à ilusão de verdade, e justamente no momento em que ela já teve tempo de se instalar na percepção do espectador ele nos chama de volta com o beliscão. Primeiro funny game: quando a gente começa a acreditar na veracidade daquilo que vemos na tela, Haneke chega e nos desilude, nos acorda. “Ei, ei, ei!! Isso é só cinema!”
Haneke faz isso direto: sempre gosta de brincar com o espectador, fazendo-o tomar por realidade aquilo que depois será desmascarado como ficção. É assim com as imagens da casa da família protagonista de "Caché", que parecem "verdadeiras" e não passam de gravações; e é assim em algumas cenas do ultra pós-moderno experimento hanekiano chamado "Código Desconhecido". Com certeza a mais poderosa das cenas deste último é aquela em que a Juliette Binoche percebe-se aprisionada num quarto, com gás penetrando lentamente pelo teto, enquanto dialoga com um aparente psicopata que garante que ela irá morrer. Ele, o "assassino", diz que não sente nenhuma antipatia ou ódio por ela, nada que justificasse racionalmente seu ato, mas que somente quer que "ela mostre sua verdadeira face". E a interpretação da Juliette Binoche é tão magnífica, o pavor e a estranheza que transparecem em seu rosto são tão genuínos, aquela cara de desespero e de caí-nas-garras-de-um-maluco são tão acreditáveis (é de longe um dos momentos mais brilhantes da carreira dela, que não tem poucos), que o espectador é quase que inevitavelmente levado a acreditar na veracidade do que vê à frente de seus olhos. A farsa só será desmascarada depois - e Haneke parece experimentar um prazer sádico em nos jogar na cara que estivemos nos preocupando e nos angustiando como idiotas quando era tudo de mentirinha! Tudo não passava de um filme, e o sofrimento da garota não passava de fingimento... E nós, bobinhos, deixamos o medo e o horror tomar conta...
Através desse joguinho com o espectador, ele demonstra muito bem o quanto o cinema pode ser manipulador e o quanto a ilusão de verdade por ele criada pode ser radical o bastante para vencer qualquer ceticismo. É quase um tratado prático sobre o poder imenso que o cinema tem de nos comover, mesmo que ele se mantenha sempre no domínio do “ilusionismo”. E essa arte de iludir que é consubstancial ao cinema é constantemente exposta e desmascara nos filmes do Michael Haneke: ele nos desilude e daí pra frente não sabemos mais se devemos confiar em nossos próprios sentimentos, em nossos próprios olhos - em suma, não sabemos mais se podemos confiar naquilo que estamos vendo na tela. Pode ser mentira. Vejam, por exemplo, aquela cena de "Código Desconhecido" em que a criança está prestes a despencar de um parapeito no 20o andar. O espectador sabe que aquilo é de mentira: é uma cena do filme que está sendo filmado dentro do filme. Mas essa cena demonstra muito bem que saber que a coisa é de mentira não basta para que nos destaquemos emocionalmente daquilo e assistamos tudo com indiferença. Nós sabemos que aquilo é só uma cena do filme; mas mesmo assim o desespero da mãe - novamente trazido à vida por uma excepcional Juliette Binoche - nos comove. O fingimento da Juliette Binoche é tão perfeito que não conseguimos acreditar que ela está fingindo! A ilusão de verdade é tão poderosa que nossos sentimentos são capturados, mesmo que a gente saiba que tudo não passa de uma simulação.
Mas, voltando à "Violência Gratuita": outro dos funny games que Haneke vai jogar com o espectador é o de fazer justamente o que NÃO queremos que ele faça. Claro que nossa tendência natural é simpatizar com a família sofredora, torcer por sua vitória, rezar pela virada no jogo e pelo triunfo da “Justiça” – e é claro que nos sentimos repugnados pela horrenda crueldade gratuita dos bandidos. Hanneke vai brincar com essa nossa preferência afetiva, mas ao invés de fazer o que é tradicional, ou seja, dar ao público o que ele quer e fazer vencer quem nós queremos que vença, ele se preocupará muito mais em nos frustrar. Estratégia sacana: Hanneke nos faz torcer por um time e depois faz com que esse time perca. E de goleada. E na maior humilhação. Poucos diretores conseguiram ser tão perversos com seu público quanto ele foi nesse filme...
Em diversos momentos, ele faz com que cresça dentro de nós a esperança fulgurante de que o jogo vai começar a virar em favor do Bem: quando o garotinho aponta a espingarda para o bandidão, quando os bandidões saem da casa após o primeiro assassinato, quando a esposa mata o gordo, quando a faca é encontrada no barco... Hanneke trata de nos decepcionar em todos esses momentos onde os consolos poderiam nos ter sido entregues, e essa obsessão em decepcionar o espectador chega a utilizar uma técnica revoltante. Justamente no momento em que se esboça um final feliz e a garota toma em mãos a arma e mata o bandidão, nesse momento de glória em que o espectador enfim sente a premonição de que será recompensado por ter visto tanto sofrimento, quando enfim sabemos que o Bem irá prevalecer, Hanneke tira da cartola sua maior TRAVESSURA – e é certamente uma das cenas mais marcantes de toda a sua filmografia. Algo ao mesmo tempo surpreendente, revoltante e, no fundo, genial: ele volta a fita. Só assistindo pra entender. É um soco duplo na cara do espectador: destruição da ilusão de verdade e frustração da esperança de vitória do Bem.
Não acho que nesse filme Haneke esteja tentando sugerir que na “vida de verdade” o Mal sempre vence e que o cinema não faz nada senão nos mentir. Não é bem isso - e as coisas não são tão simples. Vejo muito mais uma provocação latente ao espectador: por que você sempre vai ao cinema querendo ser consolado? Estratagema cômodo para o diretor: para aqueles que lhe disserem que não gostaram de seu filme, ele poderá tranquilamente responder: “o problema não é meu, é seu...”. Só não gostará do filme aquele que for a ele querendo encontrar os tradicionais consolos que o cinema comercial costuma nos fornecer (o bem vencerá, os maus serão punidos, o amor triunfará...)
“Violência Gratuita” é o tipo de filme que não está aí para nos dar prazer ou nos divertir. É bem provável que muita gente saia do filme “passando mal” e vá direto ao banheiro vomitar. É bem possível que a maioria das pessoas vá achar esse filme “antipático”, “niilista”, “inumano” e outros nomes piores. Tudo o que ele faz é dar ao público duas horas de uma tortura horrível de ver e, por fim, a frustração de não ver nada de bom sair daquilo. Esse é um filme que procura agir diretamente sobre o espectador, trabalhando sobre seus sentimentos, brincando sutilmente com a oscilação entre esperança e desilusão, manipulando nossos sentimentos e treinando sensibilidades suportarem melhor um cinema menos escravo do prazer e da diversão – aquilo que chamamos de Cinema De Arte, e do qual, atualmente, Haneke é um dos maiores gênios e defensores. Sim, confesso que “Violência Gratuita” não é um filme que me faça sentir bem – mas Haneke, no fundo, está perguntando: quem disse que o cinema tem que se reduzir à função de te fazer bem?
Donde o filme de Haneke pode nos ensinar também um pouco de auto-crítica. Você não gostou de um certo filme, tudo bem: mas isso quer dizer, necessariamente, que o filme é ruim? O que está errado será que não são as suas expectativas, o que você desejava encontrar ali? Você realmente tem certeza de que o problema não é com você?
O cinema de Haneke mostra então ao que veio: o que importa nem é tanto o que está na tela, mas a reação daquilo sobre o espectador e a capacidade que aquele material tem de causar reações emocionais e racionais. “Violência Gratuita” faz tudo isso: é um manifesto contra a violência estilizada e consumível, um protesto contra os enredos consoladores e kitsch e um filme que constantemente solicita que o espectador acorde de seu transe e se torne mais crítico e lúcido na sua relação com o filme que vê. Não é pouca coisa para um filme que, na sua superfície, parecia somente um arbitrário exercício de sadismo...
Eduardo Carli de Moraes, jul/2006
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