quarta-feira, 14 de março de 2012

ARTIGO: publiquei artigo abordando o domínio sádico nas instâncias das agências do controle

A exploração do domínio sádico por uma nova criminologia
Fábio Ataíde


ATAÍDE, Fábio. A exploração do domínio sádico por uma nova criminologia. . In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 20, n. 232, p. 16, mar., 2012.
1239 registros sobre o assunto Criminologia.


De maneira mais ou menos forte, as diversas instituições que compõem o sistema de justiça penal estão interligadas entre si, o que forma um campo que se distingue dos demais setores sociais pela maneira como compreende e reage ao fenômeno crime. No âmbito deste campo, delegados, peritos, juízes, promotores ou agentes penitenciários podem compartilhar valores internos exprimindo uma cultura menos aderente ao discurso da academia e mais demarcada pelas próprias convicções dos atores humanos adestrados segundo um habitus. Por isso, explica Garland, a reação ao crime depende significativamente da cultura que dá suporte ao campo, de modo que cabe não confundir discurso com ação, isto é, a política criminal que se enuncia nem sempre representa efetivamente a que se executa.(1)
Dessa forma, podemos dizer que o controle reveste um sonho mítico de que podemos contornar o impossível e evitar a desordem. Este desafio termina em vão quando descobrimos o próprio controle sem controles. O discurso que se faz repetir pela academia encontra muitos monstros, mas ainda assim não foi capaz de evitar o que está oculto como um mal-estar e entala a garganta quando tomamos notícias da falta de ação do Estado. A suposta defesa social por meio de políticas de tratamento humanitário freia diante dos atores da gestão penal.(2) O que fazer com o lado mais escuro do Estado, quero dizer, com o inconsciente dos atores do campo que atuam segundo uma cultura oposta ao discurso? Por que o discurso que vem de fora contradiz a ação que se pratica dentro do campo?
Na persecução penal, agentes do controle se fecham à sombra de seu inconsciente, dando base à formação de uma cultura sádica, talvez explicando o motivo pelo qual o discurso minimalista que vem de fora não frustra a ação da agressividade. Neste pequeno mundo podemos não encontrar o discurso, mas a ação dos próprios desejos reprimidos, escondidos a uma distância segura de tantos outros. O Processo Penal torna-se assim um lugar protegido para quem substitui (ou ignora?) o outro por si próprio. A solução final da sentença vem assim como um ato falho da burocracia punitiva, muitas vezes reveladora de uma cultura do controle carregada de conceitos abstratos e estigmas.
Como nada funciona, o controle entra em crise e não sabemos por que os seus agentes ignoram a tortura diária do cárcere e tampouco percebem as estruturas funcionando para garantir a impunidade de outros. Neste quadro, a ordem social vem sendo gerida sob bases inconciliáveis. Enquanto a cultura policial impõe a disciplina para controlar a liberdade individual, esquecemos que nossos impulsos reprimidos podem escapar como atos falhos.
À sombra dos impulsos reprimidos, eis que surge a cultura do controle, entrelaçada por sinais evidentes de domínio sádico, em relação ao qual cabe avisar desde logo que “o sadismo não é simplesmente o desejo de lesar ou humilhar”, mas ainda “o desejo do controle absoluto sobre o outro ser”.(3)
É frisante que as tentativas de minimizar o controle partem de fora do campo, razão pela qual sucumbem, diante da força de resistência punitivista, organizada internamente como estratégia para combater o inimigo, amenizar o medo coletivo e finalmente dar movimento às frustrações reprimidas de seus atores. Os que acreditam neste sonho precisam de inimigos devidamente convertidos em objetos de desejo, sobre os quais afirmam sua autoridade e assim resistem às mudanças propostas pelo discurso minimalista dos outros.(4)
Um estudo da evolução dos órgãos de controle pode explicar muito a respeito de como chegamos a este avançado estágio de vigilância das massas e vertiginoso (des)controle. Mais difícil é entender que existe subjacente nisso tudo uma tradição orientada para estabelecer o domínio por meio de uma rede invisível de consensos. Esta culatura do campo ou, como preferem outros (Greene), esta subcultura age seletivamente, dando continuidade a valores organizacionais de domínio sádico. É um lugar de resistência que subverte o discurso para garantir a continuidade da ocupação do espaço público. E assim as agências de controle revelam-se como causa da desordem.5
Nesse ritmo, a cultura contesta o discurso para assegurar um domínio supremo da vida cotidiana; subverte a norma com o fim de impor uma ordem. A lei e a ordem vêm assim ao arrepio da norma. Vítimas de suas impotências, os atores do controle optam pela solução sádica. Ignoram os aspectos emocionais de sua decisão. Diante deste panorama, quero inferir que ação e discurso podem movimentar emoções diferentes. Do lado de fora do campo, os discursos tornam-se mais fortes, enquanto dentro levam vantagem as ações concretas, não necessariamente em harmonia com aqueles.
Nesse passo, Karstedt deixa ver que os sentimentos de remorso, vergonha e culpa são próprios das instituições judiciárias, enquanto a raiva (hostilidade) está mais associada à ampla ideia de justiça.(6) Com razão, as instâncias judiciárias tendem a rejeitar os sentimentos agressivos, ainda que tais emoções estejam conectadas de alguma forma à ideia de justiça penal e estejam na base do retributivismo. Deduz-se, com efeito, que os discursos reparadores de danos são mais fortes fora do campo e não no interior, onde, ao contrário, animam-se ideias de ação, justiça e agressividade, ou seja, sentimentos de danos e não de reparação.
Sob esse aspecto, como os sistemas judiciários são cada vez mais estimulados de fora por discursos restaurativos de compaixão, ocorre uma repressão na agressividade nutrida no interior do campo. Mesmo assim, instâncias sociais como o processo penal naturalmente dão centelha aos impulsos sádicos(7) e dessa forma surge no homem um mal-estar que advém desta desordem e violência reprimida, que, contraditoriamente, também lhe satisfaz. No exercício da cultura do campo, o agente não se intimida pela norma proibitiva da agressão, porque ele está num mundo estranho, inconsciente, e assim deseja dominar o outro, para somente dessa forma conseguir a sua justiça interior.
Com o discernimento desta problemática, uma criminologia das sombras vem justamente para explicar a cultura do controle como válvula de escape de nossos impulsos sádicos reprimidos.(8) Nesta tentativa de apenas colocar o tema, podemos dizer que, tratando-se de seres presos ao domínio do inconsciente, é exigente a libertação plena da individualidade, ou seja, não nos cabe apenas atribuir o punitivismo ao Estado, sem antes perceber o seu domínio dentro de nós mesmos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ataíde, Fábio. Colisão entre poder punitivo do Estado e garantia constitucional da defesa. Curitiba: Juruá, 2010.
Fromm, Erich. A descoberta do inconsciente social: contribuição ao redirecionamento da psicanálise. Trad. Lúcia Helena S. Barbosa. São Paulo: Manole, 1992.
Garland, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Trad. André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
Greene, Jack R. La policía de proximidad en Estados Unidos: cambios en la naturaleza, estructura y funciones de la policía. In: Barberet, Rosemary; Barquín, Jesús. Justicia penal siglo XXI: una selección de criminal justice. Trad. Andrea Giménez. Granada, 2006.
Karstedt, Susanne. Emotions and criminal justice. Theoretical Criminology, Londres, vol. 6 (3): 299-317, 2002.
Matravers, Amanda; Maruna, Shadd. Contemporary penality and psychoanalysis. Critical Review of International Social and Political Philosophy, vol. 7, n. 2, 2004, p. 118-144.
NOTAS
(1) Garland, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Trad. André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p. 70 e 77.
(2) Ataíde, Fábio. Colisão entre poder punitivo do Estado e garantia constitucional da defesa. Curitiba: Juruá, 2010. p. 398.
(3) Fromm, Erich. A descoberta do inconsciente social: contribuição ao redirecionamento da psicanálise. Trad. Lúcia Helena S. Barbosa. São Paulo: Manole, 1992. p. 138.
(4) Greene, Jack R. La policía de proximidad en Estados Unidos: cambios en la naturaleza, estructura y funciones de la policía. In: Barberet, Rosemary; Barquín, Jesús. Justicia penal siglo XXI: una selección de criminal justice. Trad. Andrea Giménez. Granada, 2006. p. 352.
(5) Idem, ibídem.
(6) Karstedt, Susanne. Emotions and criminal justice. Theoretical Criminology, Londres, vol. 6 (3): 312, 2002.
(7) Matravers, Amanda; Maruna, Shadd. Contemporary penality and psychoanalysis. Critical Review of International Social and Political Philosophy, vol. 7, n. 2, 2004, p. 129.
(8) Idem, p. 141.
Fábio Ataíde
Juiz de Direito.
Professor de Direito Penal/UFRN.

2 comentários:

Milton Flávio disse...

Parabéns Dr. Fábio pelo artigo, abraços do amigo Milton Flávio.

fabioataide disse...

Obrigado pelo comentário.