quarta-feira, 3 de agosto de 2011

The Lincoln Lawyer, um filme para entender a disparidade do processo penal americano

Começo minhas aulas de Direito Penal próxima segunda. Nas aulas iniciais, vou fazer uma análise da evolução das ideias penais, preparando-se para mostrar a ruptura causada com o modelo de pensamento criminológico radical. Vamos partir de uma visão “dada” do Direito Penal, passar pelas novas teorias do desvio (Goffman, Cohen, Sutherland etc), chegar no conflitante mundo das relações de poder com a criminologia radical.
Para ajudar na compreensão da aulas, sugiro a todos que vejam o filme "O Poder e a Lei" (título original: The Lincoln Lawyer).
Assim, focando as relações de poder e o processo penal, The Lincoln Lawyer não é um filme apenas ideal para a compreensão das relações de poder na sociedade e a sua interferência no sistema penal, mas igualmente necessário à visão das diferenças entre o sistema processual americano e o modelo continental (europeu), que inspira em grande parte o sistema penal brasileiro.
Antes de qualquer coisa, observemos que o modelo processual brasileiro ainda não decidiu o que deseja para si; não sabemos certamente de qual mãe queremos ser filho. 
Deixemos de lado isso e vamos diretamente ao filme.
Nas minhas aulas de Direito Penal 2, já tive oportunidade de explorar essas diferenças apenas no aspecto do sistema de punição, mas há igualmente motivações que alcançam  direta e profundamente o processo penal.
O filme leva-nos a observar todas as diferenças com lentes generosas entre a matiz do sistema processual penal americano e o europeu continental.
Primeiro, para compreender o sistema americano, tenha em mente que o princípio da legalidade de lá é visto de forma diversa ao nosso princípio da legalidade. Este principio adquire nos EUA uma conotação muito mais aberta e isso ocorre exatamente por força do poder de discricionariedade que existe nas primeiras fases do sistemas processual americano.
Quero dizer com isso também que a igualdade no modelo americano precisa ser enfocada a partir de um contexto problemático grave: a questão racial. Adorei no filme o fato de ser negro o motorista do advogado Mick Haller. Isto parece sugerir a lembrança de que a questão racial está guiando a escolha teórica do sistema processual. Maravilha! É assim que penso. Isso é verdade porque o problema racial determina as razões pelas quais o sistema processual de lá apresenta tantas diferenças.
Ao contrário do modelo europeu, a igualdade no sistema americano se submete a uma revisão rigorosa, a ponto de o sistema processual permitir muito pouca margem de discricionariedade nas fases finais, especialmente na fase de sentença, ou seja, nos EUA a igualdade tem mais importância na fase de sentença e justamente por força de questões raciais. Dadas as contingências sociais, o direito penal americano abandonou o modelo de sentenças discricionárias, ou seja, fez a escolha diversa do modelo europeu, que permite mais discricionariedade na fase de sentença por forca do principio da individualização .
De outro lado, o direito americano compensa esse rigor na fase de sentença com ampla margem de negociações existentes nas primeiras fases do processo. The Lincoln Lawyer mostra claramente estas primeiras fases do sistema processual e a interferência que o poder econômico pode exercer sobre ele. Ao contrário do que se pode pensar, o processo penal americano está nas fases iniciais muito mais sujeito às interferências de ordem política e isso tende a diminuir quanto mais nos aproximamos da fase de sentença.
A trama mostra um advogado defendendo um filho de papai rico, sem culpa formada, mas possivelmente responsável por uma série de crimes. A certa altura, leva-se o advogado a entrar em conflito ético em face de outro caso de um reu pertencente a uma classe social inferior, mas que, apesar de verdadeiramente inocente, teve a culpa formada. Está aqui a essência do modelo processual penal americano. E o filme toca perfeitamente nisso.
Veja que as diferenças do sistema americano e europeu ocorrem principalmente na fase pre-trial (fase inicial; pre-processual). Enquanto o modelo europeu busca a existência de evidências para dar embasamento a uma acusação (charge), o modelo americano segue caminho inverso. Ou seja, a fase pre-trial desenvolve-se com o advogado tentando afastar as evidências, caso contrário ele não terá grande sucesso na fase trial, correndo sérios riscos em face do retribucionismo ou determinismo  existente na fase de sentença. Esse jogo de gato e rato é a essência do modelo americano e está em todas as cores no excelente The Lincoln Lawyer.

Não deixem de assistir. Mais comentários e explicações em sala de aula...

Veja o trailer:


Para maiores informações, cf. adorocinema

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