quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Sentença. Trasnferência de servidor (Juiz André Melo - Caicó/RN)

Autos n.º [Número do Processo] Classe[Classe e Procedimento do Processo no 1º Grau][Tipo Completo da Parte Ativa Principal][Nome da Parte Ativa Principal][Tipo Completo da Parte Passiva Principal][Nome da Parte Passiva Principal]

Decisão
1. Trata-se de ação de segurança com pedido liminar impetrada por MARIA LEIDE ROCHA FERNANDES, qualificada nos autos, através de advogado habilitado, indicando como autoridade coatora o Prefeito Constitucional do Município de Paraná-RN, cujo objeto é ser mantida a lotação da impetrante na Escola Municipal Francisco André de Morais.
2. Fundamentou o seu pedido, alegando haver sido abusivamente transferida para outra unidade escolar, distante mais de 12 Km da cidade, em razão de divergências de cunho político.
3. Com a inicial vieram procuração e os documentos de fls. 13/52.
4. O MM Juiz, então dirigente do feito, reservou-se a apreciar o pedido liminar após manifestação da autoridade tida como coatora.
5. As informações iniciais foram prestadas às fls. 56/61, defendendo a autoridade, preliminarmente, a ilegitimidade passiva ad causam e, no mérito, inexistir inamovibilidade funcional a amparar o pleito da impetrante.
Vieram-me os autos conclusos.
6. A tutela de urgência trabalha com a dimensão temporal e com a efetividade. É preciso observar que, na atualidade, a preocupação da doutrina processual no que se refere a essas duas dimensões não se restringe à mera tutela ao processo com único fim de se garantir a eficácia jurídico-formal da prestação jurisdicional final, ou seja, à utilidade do processo de conhecimento à cognição plena, mas à efetividade no plano dos fatos, e mais, dentro de um prazo razoável. Embora, como assinala Federico Carpi, de Bolonha, não seja nova a preocupação com a longevidade dos processos, o que é novo em nossa época é "a consciência nos ordenamentos modernos de que a tutela jurisdicional dos direitos e dos interesses legítimos não é efetiva se não é obtida rapidamente. Em outras palavras o fator tempo tornou-se um elemento determinante para garantir e realizar o acesso à justiça."(Tradução nossa, grifo nosso)
7. Essa assertiva é de fácil constatação quando se observa a internacionalização da tutela sumária satisfativa. Federico Carpi, embora reconhecendo a necessidade de uma maior sistematização das modalidades de tutela, cita: référé-provision francês, que consiste em uma medida antecipatória que pode ser concedida a qualquer tempo no processo relativo ao direito civil, comercial e ao do trabalho o Einstweiligen Verfüngen alemão nos dois tipos previstos no ZPO § 935 e § 940, que possibilita a antecipação parcial da decisão definitiva para manter a paz jurídica e a interlocutory injuction dos países do Common Law. Na Itália, a reforma implementada pela Lei nº 353 de 26 de novembro de 1990 procurou valorizar o juiz de primeiro grau, tornando regra a execução provisória da sentença e permitindo o deferimento de provimentos antecipatórios de condenação. Foram introduzidos os arts. 186 bis e 186 ter, possibilitando a antecipação da condenação de quantia não contestada ou, quando da fase das conclusões, o requerimento de antecipação, cujos pressupostos são os mesmos necessários para emissão do decreto injuntivo no procedimento monitório.A tutela sumária satisfativa na Itália já era conhecida em procedimentos especiais como o do processo de trabalho no art. 423 do CPC Italiano e na utilização dos provimentos de urgência com fundamento no art. 700 do referido CPC.
8. No âmbito comunitário europeu, a Corte de Justiça de Luxemburgo tem reconhecido sistematicamente a necessidade de medidas urgentes, não só negativas (cautelares), mas também positivas (antecipatórias) para garantir a efetividade do processo e, em conseqüência, dos direitos que ele deve tornar efetivos. Como exemplo desse labor da Corte, cita-se não só a afirmação da possibilidade de ações cautelares contra a "Coroa," alterando-se norma tradicional inglesa, como também a superação dos rígidos confins a que vários países europeus limitavam a tutela cautelar nos confrontos com a administração pública. Como bem assevera Nicolò Trocker:
(...) suas pronúncias (a da Corte) não atingem apenas a normativa inglesa que exclui totalmente a admissibilidade de ações cautelares nos litígios da Coroa. Vêm sendo superados os rígidos confins que, segundo um mero dado legislativo, em outros países europeus – da França à Espanha à Itália – limitam a tutela cautelar nos confrontos da administração pública apenas à suspensão do ato impugnado. (tradução nossa).
Trocker lembra, ainda, a exigência de uma tutela inibitória efetiva, inclusive de urgência, para proteção dos consumidores.
9. No Brasil, a doutrina tem entendido que há um direito constitucional à tutela de urgência com fundamento no art. 5º, inciso XXXV, direito este que não pode ser limitado por norma infraconstitucional, ou seja, o legislador não pode, a priori, dizer se neste ou naquele caso há periculum in mora. O inciso XXXV do art. 5º protege não só acesso à justiça quando há lesão a direito, mas também quando há ameaça a direito, o que exige do sistema jurídico meios adequados para garantir a efetividade processual, a qual só se obtém se a tutela for adequada e tempestiva.
10. A tutela de urgência, portanto, é um direito do cidadão, cabendo ao juiz apenas decidir se presentes os requisitos para o deferimento nos moldes requeridos, vez que é ponto pacífico no nosso ordenamento jurídico que: "não fica ao arbítrio do Juiz deixar de conceder liminar, se preenchidos os requisitos legais para esse fim". (BOL AASP 1.027/157) - CPC - Theothonio Negrão, 26a ed. SARAIVA.
11. Para concessão da liminar em mandado de segurança, faz necessária a presença concomitante do fumus boni iuris e do periculum in mora.
Inicialmente, é interessante destacar que realmente os servidores públicos em geral não gozam da prerrogativa da inamovibilidade, o que, contudo, em face dos princípios da impessoalidade e da moralidade, corolários do princípio republicano, não afasta o dever de motivar e de justificar quais os critérios de eleição utilizados para "transferir" um servidor e não outro, por exemplo. No caso dos autos, a autoridade impetrada não juntou qualquer justificativa ou ato concreto nesse sentido. Pondere-se que a lei não é um cheque em branco para o administrador.
Tal ausência de critérios e de fundamentação válida torna plausíveis os argumentos da impetrante no sentido de que o critério utilizado foi pessoal, principalmente considerando-se a realidade do exercício do Poder em nosso país, especialmente no âmbito municipal.

O Professor Roberto DaMatta, possivelmente o mais importante antropólogo brasileiro da atualidade, aponta que a desconfiança da sociedade sobre vários processos implementados pelo Estado justifica-se pelo fato de o Brasil viver o dilema da presença concomitante de um espírito moderno, fundado em valores como igualdade, impessoalidade, mérito profissional, eficiência, direitos humanos, que exigem aplicação universal, disputando, ainda hoje, com valores semi-tradicionais, fundados não no indivíduo como cidadão, mas na pessoa e nas suas relações pessoais, como a troca de favores, relações de parentesco, de amizade, de simpatia e de hierarquia, apesar da igualdade formal garantida constitucionalmente, sendo, muitas vezes, estes últimos determinantes na solução real de vários conflitos e problemas no seio social.
Na atualidade, em ensaio sobre o público e o privado de inquestionável valor, bem acentuou o Professor Nelson Saldanha o sentido personalista que vem sendo utilizado no Brasil no trato da coisa pública, o que não é novo do ponto de vista histórico. Faltou ao Brasil um sentido de vida pública até a independência que existiu nos outros países latino-americanos, talvez pela ausência de imprensa e de universidades. Foi com essa realidade, como anota Nelson Saldanha "com as estruturas ainda feudais e com o sentido personalista das coisas que, no Brasil, esbarrou o ideal iluminista de cidadão, oriundo da conversão do "súdito" em contribuinte e em eleitor. Um ideal cujo alcance estaria em ver em cada indivíduo sua dimensão pública."

No ambiente de uma Sociedade patriarcal e personalista, herança deixada pelos nossos pais ibéricos, não é difícil imaginar o que provoca o transplante dessas marcas para administração pública. Sérgio Buarque de Holanda nos ensinou como as relações pessoais eram tão caras aos espanhóis e aos portugueses ao ponto de não compreenderem que uma pessoa, por exercer determinada função pública, deixe de prestar a amigos e a parentes favores dependentes de tal função, concluindo que essas práticas se "erigem contra rígida aplicação das normas de justiça e de quaisquer prescrições legais".
Presente, portanto, o requisito do fumus boni iuris necessário à concessão da liminar, devendo-se ressaltar que o Secretário Municipal de Educação possui subordinação hierárquica direta com a autoridade apontada coatora.

Igualmente presente o periculum in mora, tanto do ponto de vista funcional da impetrante que foi transferida ao arrepio do princípio republicano, como do risco de violação ao patrimônio imaterial da administração pública.
Observe-se, não basta a afirmação de o processo dever garantir os direitos, é preciso investigar tanto do ponto de vista dogmático como empírico se os meios, os remédios postos à disposição dos cidadãos são realmente acessíveis e aptos para fazer os direitos satisfeitos, efetivos. A primeira indagação a ser feita para se verificar se um processo é efetivo é se os remédios processuais são acessíveis a quem necessitar da atuação jurisdicional para proteção de direito, se são razoavelmente eficientes em termos de tempo, custo e, enfim, se garantem resultados concretos e adequados à natureza da situação concreta que necessita de tutela.
Na hipótese dos autos, faz-se necessário dotar de efetividade este provimento jurisdicional, principalmente considerando que eventual recurso será recebido, regra geral, no efeito só devolutivo.
Ademais, o cidadão, regra geral, vem a juízo pleiteando um bem da vida de valor individual ou coletivo e não um mero acertamento, uma mera declaração. Como bem anotou Nilcéa Maggi, em sua tese de doutorado:
Pode-se dizer que a atividade jurisdicional apresenta-se com duas faces: uma que declara o direito, outra que realiza o direito declarado. Conhecimento e julgamento da lide (cognição) e atuação da sanção (execução), uma completando a outra. São faces de uma mesma medalha.
Moura Rocha bem colocaria a questão, em obra de referência, no sentido de que a jurisdição é mais do que "atividade de decisão" ou "atividade de cautela", é também "atividade de execução", ou seja, a prestação jurisdicional não se esgota com a prolatação da sentença.
Considerando-se que a execução, processo autônomo ou fase de um procedimento unitário, é um dos momentos de maior importância na prestação jurisdicional, pois nele é que efetivará o direito já reconhecido na sentença, principalmente quando a executada é a Fazenda Pública contra a qual não poderia ser instaurada, ou pelo menos ultimada, a execução da obrigação de pagar antes do trânsito em julgado da sentença no processo de conhecimento, em face da ordem dos precatórios estabelecida no art. 100 da Constituição da República. É a execução que vai definir o prestígio da prestação jurisdicional, pois:
Quer para prestigiar-se, quer para desmoralizar-se, é no cumprimento da sentença, na execução da sentença, que a justiça mais se aproxima do povo. É simplesmente uma questão de eficácia ou inoperância. A conclusão a que se chega, diante do conceito que se tem hoje de justiça, é a de uma justiça desacreditada, morosa, emperrada. Em muitos casos, antes de se fazer justiça, leva-se o jurisdicionado à frustração e ao desespero. (Grifo nosso)

Nesse sentido, Leonardo Carneiro da Cunha, acompanhando Tereza Arruda Alvim Wambier, aponta como solução que a multa, tanto a do §4º do art. 461 como a do parágrafo único do art. 14, seja aplicada ao agente público responsável pelo descumprimento.
Flávio Luiz Yarshell traz interessante posicionamento de Cândido Rangel Dinamarco favorável à possibilidade de o juiz, com fundamento no art. 461, § 5º do CPC, poder determinar a substituição do servidor público que personifica o descumprimento por parte da Fazenda Pública. Embora se concorde com essa posição, ela exige muita prudência e conhecimento razoável do juiz da estrutura da administração para cada ato relativo ao processo.
Desta forma, a multa será aplicada de forma pessoal ao agente público responsável pelo cumprimento da tutela de urgência.
10. Posto isso, defiro o pedido liminar pelo que determino a suspensão imediata do ato de transferência da impetrante, a qual deverá continuar exercendo as funções inerentes ao seu cargo na Escola Municipal Francisco André de Morais.
Fixo, desde já, multa diária pessoal no valor de R$ 1.000,00 (um mil reais) ao Exmo Prefeito Constitucional do Município do Paraná, com termo inicial no terceiro dia, contando-se da juntada dos mandados de intimação desta decisão.
Notifique-se a autoridade apontada coatora para, no prazo legal, prestar as informações.
Após, dê-se vista ao Ministério Público.
Em seguida, voltem-me conclusos.
Intimem-se.
[Município da Vara]-RN, [Data do Sistema por Extenso].
[Nome do Juiz do Processo no 1º Grau]
Juiz de Direito

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