Tráfico de Entorpecentes – Denegação do Direito de Recorrer em Liberdade Fundada no Art. 59 da Lei de Drogas e, mediante Reforço de Argumentação (Inadmissível), no Art. 4º desse mesmo Estatuto (Transcrições)
HC 103529-MC/SP*
RELATOR: Min. Celso de Mello
EMENTA: “HABEAS CORPUS”. DENEGAÇÃO DO DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE FUNDADA NO ART. 59 DA LEI DE DROGAS. CONTEÚDO NORMATIVO DESSA REGRA LEGAL VIRTUALMENTE IDÊNTICO AO DO ART. 594 DO CPP QUE, NÃO OBSTANTE HOJE DERROGADO (LEI Nº 11.719/2008), FOI CONSIDERADO INCOMPATÍVEL, PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, COM A VIGENTE CONSTITUIÇÃO (RHC 83.810/RJ, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA). REFORÇO DE ARGUMENTAÇÃO EFETUADO PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. INADMISSIBILIDADE. PRECEDENTES DO STF. AINDA QUE POSSÍVEL TAL REFORÇO, OS FUNDAMENTOS EM QUE SE APÓIA MOSTRAR-SE-IAM DESTITUÍDOS DE CONSISTÊNCIA EM FACE DA APARENTE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 44 DA LEI DE DROGAS. VEDAÇÃO LEGAL IMPOSTA, EM CARÁTER ABSOLUTO E APRIORÍSTICO, QUE OBSTA, “IN ABSTRACTO”, A CONCESSÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA NOS CRIMES TIPIFICADOS NO ART. 33, “CAPUT” E § 1º, E NOS ARTS. 34 A 37, TODOS DA LEI DE DROGAS. POSSÍVEL INCONSTITUCIONALIDADE DA REGRA LEGAL VEDATÓRIA (ART. 44). OFENSA AOS POSTULADOS CONSTITUCIONAIS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, DO “DUE PROCESS OF LAW”, DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA PROPORCIONALIDADE. O SIGNIFICADO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE, VISTO SOB A PERSPECTIVA DA “PROIBIÇÃO DO EXCESSO”: FATOR DE CONTENÇÃO E CONFORMAÇÃO DA PRÓPRIA ATIVIDADE NORMATIVA DO ESTADO. PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: ADI 3.112/DF (ESTATUTO DO DESARMAMENTO, ART. 21). CARÁTER EXTRAORDINÁRIO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE INDIVIDUAL. NÃO SE DECRETA NEM SE MANTÉM PRISÃO CAUTELAR, SEM QUE HAJA REAL NECESSIDADE DE SUA EFETIVAÇÃO, SOB PENA DE OFENSA AO “STATUS LIBERTATIS” DAQUELE QUE A SOFRE. PRECEDENTES. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.
DECISÃO: Trata-se de “habeas corpus”, com pedido de medida cautelar, impetrado contra decisão, que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, restou consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 18):
“PETIÇÃO RECEBIDA COMO ‘HABEAS CORPUS’. PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. PRISÃO EM FLAGRANTE. LIBERDADE PROVISÓRIA. VEDAÇÃO IMPOSTA PELA CONSTITUIÇÃO, PELO ART. 2º, INCISO II, DA LEI 8.072/90 E PELO ART. 44 DA LEI 11.343/06. ORDEM DENEGADA.
1. O inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal estabelece que o crime de tráfico ilícito de entorpecentes é inafiançável. Não sendo possível a concessão de liberdade provisória com fiança, com maior razão é a não-concessão de liberdade provisória sem fiança.
4. Ordem denegada.”
(Pet 7.623/SP, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA - grifei)
Passo a apreciar o pedido de medida liminar ora formulado pela parte impetrante. E, ao fazê-lo, entendo plausível, em sede de estrita delibação, a pretensão jurídica deduzida na presente causa.
Constata-se, pela análise da sentença penal condenatória (fls. 07/16), que não há, nela, qualquer motivação justificadora da concreta necessidade de manutenção da prisão cautelar dos pacientes (fls. 16):
“Os réus já se encontram presos cautelarmente e, se insatisfeitos com a decisão, não poderão recorrer em liberdade, em vista da proibição expressamente prevista no artigo 59 da Lei Antitóxicos, que entendo não ter sido revogado pelo art. 2º, § 2º, da Lei nº 8.072/90.” (grifei)
Vê-se que o magistrado de primeira instância, ao negar, na espécie, a possibilidade de os pacientes recorrerem em liberdade, apoiou-se, unicamente, sem referência a qualquer situação evidenciadora da concreta necessidade da prisão cautelar, na vedação imposta, em abstrato, pelo art. 59 da Lei nº 11.343/2006, que reproduz, virtualmente, o que prescrevia o art. 594 do CPP, hoje derrogado pela Lei nº 11.719/2008.
Ocorre, no entanto, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao analisar o conteúdo de referida norma legal (CPP, art. 594), entendeu-a incompatível com o modelo consagrado na vigente Constituição da República, vindo a formular, por isso mesmo, juízo negativo de recepção, como resulta de julgamento assim ementado:
“RECURSO ORDINÁRIO EM ‘HABEAS CORPUS’. ART. 594 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. CONHECIMENTO DA APELAÇÃO E RECOLHIMENTO DO RÉU CONDENADO À PRISÃO. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E DA AMPLA DEFESA. RECURSO PROVIDO.
1. O recolhimento do condenado à prisão não pode ser exigido como requisito para o conhecimento do recurso de apelação, sob pena de violação aos direitos de ampla defesa e à igualdade entre as partes no processo.
2. Não recepção do art. 594 do Código de Processo Penal da Constituição de 1988.
3. Recurso ordinário conhecido e provido.”
(RHC 83.810/RJ, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA – grifei)
Essa circunstância basta, só por si, para justificar – ao menos em juízo de estrita delibação – a plausibilidade jurídica da pretensão deduzida nesta sede processual.
Observo, ainda, na espécie, que a decisão proferida pelo magistrado local de primeira instância pareceria justificar a (inadmissível) execução provisória da condenação penal.
É imperioso observar, no ponto, que o Supremo Tribunal Federal não reconhece a possibilidade constitucional de execução provisória da pena, por entender que orientação em sentido diverso transgrediria, de modo frontal, a presunção constitucional de inocência.
É por tal motivo que, em situações como a que ora se registra nesta causa, o Supremo Tribunal Federal tem garantido, ao condenado, até mesmo em sede cautelar, o direito de aguardar em liberdade o julgamento dos recursos interpostos, ainda que destituídos de eficácia suspensiva (HC 85.710/RJ, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 88.276/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - HC 88.460/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – HC 89.952/MG, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, v.g.), valendo referir, por relevante, que ambas as Turmas desta Suprema Corte (HC 85.877/PE, Rel. Min. GILMAR MENDES, e HC 86.328/RS, Rel. Min. EROS GRAU) já asseguraram, inclusive de ofício, a diversos pacientes, o direito de recorrer em liberdade.
É certo, no entanto, que, proferida sentença penal condenatória, nada impede que o Poder Judiciário, a despeito do caráter recorrível desse ato sentencial, decrete, excepcionalmente, a prisão cautelar do réu condenado, desde que existam, contudo, quanto a ela, reais motivos evidenciadores da necessidade de adoção dessa extraordinária medida constritiva de ordem pessoal (RTJ 193/936, Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 71.644/MG, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Isso significa que, para efeito de legitimação da prisão cautelar motivada por condenação recorrível (como sucede na espécie), exigir-se-á, sempre, considerada a inconstitucionalidade da execução penal provisória (HC 84.078/MG, Rel. Min. EROS GRAU, Pleno), a observância de certos requisitos, sem os quais não terá validade jurídica alguma esse ato de constrição da liberdade pessoal do sentenciado, consoante adverte o magistério da doutrina (ROBERTO DELMANTO JÚNIOR, “As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração”, p. 202/234, itens ns. 6 e 7, 2ª ed., 2001, Renovar; LUIZ FLÁVIO GOMES, “Direito de Apelar em Liberdade”, p. 104, item n. 3, 2ª ed., 1996, RT; PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN/JORGE ASSAF MALULY, “Curso de Processo Penal”, p. 163/164, item n. 7.1.5, 3ª ed., 2005, Forense; MARCELLUS POLASTRI LIMA, “A Tutela Cautelar no Processo Penal”, p. 286/301, item n. 4.4.3.1.5, 2005, Lumen Juris; ROGERIO SCHIETTI MACHADO CRUZ, “Prisão Cautelar”, 2006, Lumen Juris, v.g.), em lições que têm merecido, no tema, o beneplácito da jurisprudência desta Corte Suprema.
O exame da decisão ora questionada parece revelar que esse ato decisório não se ajustaria ao magistério jurisprudencial prevalecente nesta Suprema Corte, pois – insista-se – a denegação, ao sentenciado, do direito de recorrer (ou de permanecer) em liberdade depende, para legitimar-se, da ocorrência concreta de qualquer das hipóteses referidas no art. 312 do CPP (RTJ 195/603, Rel. Min. GILMAR MENDES – HC 84.434/SP, Rel. Min. GILMAR MENDES – HC 86.164/RO, Rel. Min. AYRES BRITTO, v.g.), a significar, portanto, que, inexistindo fundamento autorizador da privação meramente processual da liberdade do réu, esse ato de constrição reputar-se-á ilegal, porque destituído, em referido contexto, da necessária cautelaridade (RTJ 193/936):
“(...) PRISÃO CAUTELAR – CARÁTER EXCEPCIONAL.
- A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, somente devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade.
A prisão processual, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe - além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e indício suficiente de autoria) - que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu.
- A questão da decretabilidade da prisão cautelar. Possibilidade excepcional, desde que satisfeitos os requisitos mencionados no art. 312 do CPP. Necessidade da verificação concreta, em cada caso, da imprescindibilidade da adoção dessa medida extraordinária. Doutrina. Precedentes.”
(HC 89.754/BA, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Em suma: a prisão processual, de ordem meramente cautelar, ainda que fundada em condenação penal recorrível, tem, como pressuposto legitimador, a existência de situação de real necessidade, apta a ensejar, ao Estado, quando efetivamente ocorrente, a adoção – sempre excepcional – dessa medida constritiva de caráter pessoal.
Nem se diga que a decisão de primeira instância teria sido reforçada, em sua fundamentação, pelo julgamento emanado do E. Superior Tribunal de Justiça, no qual se denegou a ordem de “habeas corpus” então postulada em favor dos ora pacientes.
Cabe ter presente, neste ponto, na linha da orientação jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria, que a legalidade da decisão que decreta a prisão cautelar ou que denega liberdade provisória deverá ser aferida em função dos fundamentos que lhe dão suporte, e não em face de eventual reforço advindo dos julgamentos emanados das instâncias judiciárias superiores (HC 90.313/PR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, HC 96.715-MC/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, HC 97.976-MC/MG, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.):
“(...) Às instâncias subseqüentes não é dado suprir o decreto de prisão cautelar, de modo que não pode ser considerada a assertiva de que a fuga do paciente constitui fundamento bastante para enclausurá-lo preventivamente (...).”
(RTJ 194/947-948, Rel. p/ o acórdão Min. EROS GRAU - grifei)
A motivação, portanto, há de ser própria, inerente e contemporânea à decisão que decreta (ou mantém) o ato excepcional de privação cautelar da liberdade, pois - insista-se - a ausência ou a deficiência de fundamentação não podem ser supridas “a posteriori” (RTJ 59/31 - RTJ 172/191-192 - RT 543/472 - RT 639/381, v.g.):
“Prisão preventiva: análise dos critérios de idoneidade de sua motivação à luz de jurisprudência do Supremo Tribunal.
(RTJ 179/1135-1136, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - grifei)
Mesmo que se pudesse superar esse obstáculo, a afirmação do E. Superior Tribunal de Justiça – fundada, tão-somente, no art. 44 da Lei nº 11.343/2006 – também não se revestiria de idoneidade jurídica, para efeito de justificação do ato excepcional de privação cautelar da liberdade individual.
Mostra-se importante ter presente, no caso, quanto à Lei nº 11.343/2006, que o seu art. 44 proíbe, de modo abstrato e “a priori”, a concessão da liberdade provisória nos “crimes previstos nos art. 33, ‘caput’ e § 1º, e 34 a 37 desta Lei”.
Cabe assinalar que eminentes penalistas, examinando o art. 44 da Lei nº 11.343/2006, sustentam a inconstitucionalidade da vedação legal à concessão de liberdade provisória prevista em mencionado dispositivo legal (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, “Da Repressão à Produção Não Autorizada e ao Tráfico Ilícito de Drogas”, “in” LUIZ FLÁVIO GOMES (Coord.), “Lei de Drogas Comentada”, p. 232/233, item n. 5, 2ª ed., 2007, RT”; FLÁVIO OLIVEIRA LUCAS, “Crimes de Uso Indevido, Produção Não Autorizada e Tráfico Ilícito de Drogas – Comentários à Parte Penal da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006” , “in” MARCELLO GRANADO (Coord.), “A Nova Lei Antidrogas: Teoria, Crítica e Comentários à Lei nº 11.343/06”, p. 113/114, 2006, Editora Impetus”; FRANCIS RAFAEL BECK, “A Lei de Drogas e o Surgimento de Crimes ‘Supra-hediondos’: uma necessária análise acerca da aplicabilidade do artigo 44 da Lei nº 11.343/06", “in” ANDRÉ LUÍS CALLEGARI e MIGUEL TEDESCO WEDY (Org.), “Lei de Drogas: aspectos polêmicos à luz da dogmática penal e da política criminal”, p. 161/168, item n. 3, 2008, Livraria do Advogado Editora”, v.g.).
Cumpre observar, ainda, por necessário, que regra legal, de conteúdo material virtualmente idêntico ao do preceito em exame, consubstanciada no art. 21 da Lei nº 10.826/2003, foi declarada inconstitucional por esta Suprema Corte.
A regra legal ora mencionada, cuja inconstitucionalidade foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, inscrita no Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003), tinha a seguinte redação:
“Art. 21. Os crimes previstos nos arts. 16, 17 e 18 são insuscetíveis de liberdade provisória.” (grifei)
Essa vedação apriorística de concessão de liberdade provisória, reiterada no art. 44 da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), não pode ser admitida, eis que se revela manifestamente incompatível com a presunção de inocência e a garantia do “due process”, dentre outros princípios consagrados pela Constituição da República, independentemente da gravidade objetiva do delito.
Foi por tal razão, como precedentemente referido, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 3.112/DF, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, declarou a inconstitucionalidade do art. 21 da Lei nº 10.826/2003, (Estatuto do Desarmamento), em decisão que, no ponto, está assim ementada:
“(...) V - Insusceptibilidade de liberdade provisória quanto aos delitos elencados nos arts. 16, 17 e 18. Inconstitucionalidade reconhecida, visto que o texto magno não autoriza a prisão ‘ex lege’, em face dos princípios da presunção de inocência e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente.” (grifei)
Devo assinalar, por relevante, que a aplicabilidade do art. 44 da Lei de Drogas tem sido recusada por alguns Juízes do Supremo Tribunal Federal, que vislumbram, em referida cláusula legal, a eiva da inconstitucionalidade (HC 97.976-MC/MG, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 100.330-MC/MS, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 100.949-MC/SP, Rel. Min. EROS GRAU, v.g.):
“‘HABEAS CORPUS’. VEDAÇÃO LEGAL ABSOLUTA, IMPOSTA EM CARÁTER APRIORÍSTICO , INIBITÓRIA DA CONCESSÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA NOS CRIMES TIPIFICADOS NO ART. 33, ‘CAPUT’ E § 1º, E NOS ARTS. 34 A 37, TODOS DA LEI DE DROGAS. POSSÍVEL INCONSTITUCIONALIDADE DA REGRA LEGAL VEDATÓRIA (ART. 44). OFENSA AOS POSTULADOS CONSTITUCIONAIS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, DO ‘DUE PROCESS OF LAW’, DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA PROPORCIONALIDADE. O SIGNIFICADO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE, VISTO SOB A PERSPECTIVA DA ‘PROIBIÇÃO DO EXCESSO’: FATOR DE CONTENÇÃO E CONFORMAÇÃO DA PRÓPRIA ATIVIDADE NORMATIVA DO ESTADO. PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: ADI 3.112/DF (ESTATUTO DO DESARMAMENTO, ART. 21). CARÁTER EXTRAORDINÁRIO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE INDIVIDUAL. NÃO SE DECRETA NEM SE MANTÉM PRISÃO CAUTELAR, SEM QUE HAJA REAL NECESSIDADE DE SUA EFETIVAÇÃO, SOB PENA DE OFENSA AO ‘STATUS LIBERTATIS’ DAQUELE QUE A SOFRE. PRECEDENTES. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.”
(HC 100.742-MC/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Vale mencionar, quanto à possível inconstitucionalidade do art. 44 da Lei de Drogas, recentíssima decisão proferida pela colenda Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 100.872/MG, Rel. Min. EROS GRAU, que manteve medida cautelar anteriormente concedida pelo eminente Relator da causa, que assim fundamentou, no ponto, a sua decisão monocrática:
“A vedação da liberdade provisória ao preso em flagrante por tráfico de entorpecentes, veiculada pelo art. 44 da Lei n. 11.343/06, é expressiva de afronta aos princípios da presunção de inocência, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana (arts. 1º, III, e 5º, LIV e LVII da Constituição do Brasil). (...). A inconstitucionalidade do preceito legal me parece inquestionável.” (grifei)
Essa repulsa a preceitos legais, como esses que venho de referir, também encontra apoio em autorizado magistério doutrinário (LUIZ FLÁVIO GOMES, em obra escrita com Raúl Cervini, “Crime Organizado”, p. 171/178, item n. 4, 2ª ed., 1997, RT; GERALDO PRADO e WILLIAM DOUGLAS, “Comentários à Lei contra o Crime Organizado”, p. 87/91, 1995, Del Rey; ROBERTO DELMANTO JUNIOR, “As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração”, p. 142/150, item n. 2, “c”, 2ª ed., 2001, Renovar e ALBERTO SILVA FRANCO, “Crimes Hediondos”, p. 489/500, item n. 3.00, 5ª ed., 2005, RT, v.g.).
Vê-se, portanto, que o Poder Público, especialmente em sede processual penal, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal, ainda mais em tema de liberdade individual, acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade.
Como se sabe, a exigência de razoabilidade traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo.
O exame da adequação de determinado ato estatal ao princípio da proporcionalidade, exatamente por viabilizar o controle de sua razoabilidade, com fundamento no art. 5º, LV, da Carta Política, inclui-se, por isso mesmo, no âmbito da própria fiscalização de constitucionalidade das prescrições normativas emanadas do Poder Público.
Esse entendimento é prestigiado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, por mais de uma vez, já advertiu que o Legislativo não pode atuar de maneira imoderada, nem formular regras legais cujo conteúdo revele deliberação absolutamente divorciada dos padrões de razoabilidade.
Coloca-se em evidência, neste ponto, o tema concernente ao princípio da proporcionalidade, que se qualifica - enquanto coeficiente de aferição da razoabilidade dos atos estatais (CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, “Curso de Direito Administrativo”, p. 56/57, itens ns. 18/19, 4ª ed., 1993, Malheiros; LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, “Curso de Direito Administrativo”, p. 46, item n. 3.3, 2ª ed., 1995, Malheiros) - como postulado básico de contenção dos excessos do Poder Público.
Essa é a razão pela qual a doutrina, após destacar a ampla incidência desse postulado sobre os múltiplos aspectos em que se desenvolve a atuação do Estado - inclusive sobre a atividade estatal de produção normativa - adverte que o princípio da proporcionalidade, essencial à racionalidade do Estado Democrático de Direito e imprescindível à tutela mesma das liberdades fundamentais, proíbe o excesso e veda o arbítrio do Poder, extraindo a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula, em sua dimensão substantiva ou material, a garantia do “due process of law” (RAQUEL DENIZE STUMM, “Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro”, p. 159/170, 1995, Livraria do Advogado Editora; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Direitos Humanos Fundamentais”, p. 111/112, item n. 14, 1995, Saraiva; PAULO BONAVIDES, “Curso de Direito Constitucional”, p. 352/355, item n. 11, 4ª ed., 1993, Malheiros).
Como precedentemente enfatizado, o princípio da proporcionalidade visa a inibir e a neutralizar o abuso do Poder Público no exercício das funções que lhe são inerentes, notadamente no desempenho da atividade de caráter legislativo. Dentro dessa perspectiva, o postulado em questão, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, atua como verdadeiro parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais.
Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal.
A jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, bem por isso, tem censurado a validade jurídica de atos estatais, que, desconsiderando as limitações que incidem sobre o poder normativo do Estado, veiculam prescrições que ofendem os padrões de razoabilidade e que se revelam destituídas de causa legítima, exteriorizando abusos inaceitáveis e institucionalizando agravos inúteis e nocivos aos direitos das pessoas (RTJ 160/140-141, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RTJ 176/578-579, Rel. Min. CELSO DE MELLO - ADI 1.063/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Daí a advertência de que a interdição legal “in abstracto”, vedatória da concessão de liberdade provisória, como na hipótese prevista no art. 44 da Lei nº 11.343/2006, incide na mesma censura que o Plenário do Supremo Tribunal Federal estendeu ao art. 21 do Estatuto do Desarmamento, considerados os múltiplos postulados constitucionais violados por semelhante regra legal, eis que o legislador não pode substituir-se ao juiz na aferição da existência, ou não, de situação configuradora da necessidade de utilização, em cada situação concreta, do instrumento de tutela cautelar penal.
O Supremo Tribunal Federal, de outro lado, tem advertido que a natureza da infração penal não se revela circunstância apta a justificar, só por si, a privação cautelar do “status libertatis” daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado.
Essa orientação vem sendo observada em sucessivos julgamentos proferidos no âmbito desta Corte, mesmo que se trate de réu processado por suposta prática de crimes hediondos ou de delitos a estes equiparados (HC 80.064/SP, Rel. p/ o acórdão Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - HC 92.299/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - HC 93.427/PB, Rel. Min. EROS GRAU - RHC 71.954/PA, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - RHC 79.200/BA, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, v.g.):
“A gravidade do crime imputado, um dos malsinados ‘crimes hediondos’ (Lei 8.072/90), não basta à justificação da prisão preventiva, que tem natureza cautelar, no interesse do desenvolvimento e do resultado do processo, e só se legitima quando a tanto se mostrar necessária: não serve a prisão preventiva, nem a Constituição permitiria que para isso fosse utilizada, a punir sem processo, em atenção à gravidade do crime imputado, do qual, entretanto, ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’ (CF, art. 5º, LVII).”
(RTJ 137/287, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - grifei)
“A ACUSAÇÃO PENAL POR CRIME HEDIONDO NÃO JUSTIFICA A PRIVAÇÃO ARBITRÁRIA DA LIBERDADE DO RÉU.
- A prerrogativa jurídica da liberdade - que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) - não pode ser ofendida por atos arbitrários do Poder Público, mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, eis que, até que sobrevenha sentença condenatória irrecorrível (CF, art. 5º, LVII), não se revela possível presumir a culpabilidade do réu, qualquer que seja a natureza da infração penal que lhe tenha sido imputada.”
(RTJ 187/933, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Tenho por inadequada, desse modo, por tratar-se de fundamento insuficiente à manutenção da prisão cautelar dos ora pacientes, a mera invocação do art. 44 da Lei nº 11.343/2006 ou do art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.072/90, especialmente depois de editada a Lei nº 11.464/2007, que excluiu, da vedação legal de concessão de liberdade provisória, todos os crimes hediondos e os delitos a eles equiparados, como o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins.
Em suma: a análise dos fundamentos invocados pela parte ora impetrante leva-me a entender que a decisão judicial de primeira instância não observou os critérios que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou em tema de prisão cautelar.
Sendo assim, e em face das razões expostas, defiro o pedido de medida liminar, em ordem a determinar a imediata soltura dos ora pacientes, se por al não estiverem presos, relativamente ao Processo nº 229.09.004166-2 (1ª Vara da comarca de Sumaré/SP).
Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão ao E. Superior Tribunal de Justiça (Pet 7.623/SP), ao E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (HC 990.09.190723-5) e ao MM. Juízo de Direito da 1ª Vara da comarca de Sumaré/SP (Processo nº 229.09.004166-2).
Publique-se.
Brasília, 16 de abril de 2010.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
*decisão publicada no DJE de 23.4.2010
Informativo do STF n. 0585/2010.
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