quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Distinção entre latrocínio e homicídio como delito autônomo (acórdão TJMG)


EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - LATROCÍNIO - PRELIMINAR - NULIDADE DA SENTENÇA - REJEIÇÃO - MÉRITO - DESCLASIFICAÇÃO PARA O DELITO DE HOMICÍDIO - POSSIBILIDADE - AUSÊNCIA DE 'ANIMUS FURANDI' NA CONDUTA ANTECEDENTE - SUBTRAÇÃO PATRIMONIAL POSTERIOR À VIOLÊNCIA - DESÍGNIO AUTÔNOMO - COMPETÊNCIA - TRIBUNAL DO JÚRI - PROCESSO ANULADO. RECURSO PROVIDO COM RECOMENDAÇÃO. - Se a subtração patrimonial é verificada posteriormente à morte da vítima, em desígnio autônomo, deve ser afastada a prática do crime de latrocínio, adequando-se a conduta dos agentes a delito contra a vida, impondo-se a decretação de nulidade de todo o processado, desde o oferecimento da denúncia.
(TJMG; APCR 1.0718.07.000548-0/001(1); Virginópolis; Primeira Câmara Criminal; Rel. Des. Fernando Starling; Julg. 25/08/2009; DJEMG 22/09/2009)


APELAÇÃO CRIMINAL N° 1.0718.07.000548-0/001 - COMARCA DE VIRGINÓPOLIS - APELANTE(S): GUILHERME LUCAS DOS SANTOS RIBEIRO, EMERSON DE SOUZA BATISTA - APELADO(A)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADO MINAS GERAIS - RELATOR: EXMO. SR. DES. FERNANDO STARLING
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a 1ª CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, EM PROVER O RECURSO PARA ANULAR O PROCESSO.
Belo Horizonte, 25 de agosto de 2009.
DES. FERNANDO STARLING - Relator
NOTAS TAQUIGRÁFICAS
O SR. DES. FERNANDO STARLING (CONVOCADO):
VOTO
Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço dos recursos.
Preliminarmente, a defesa de ambos os apelantes alega a nulidade da sentença, haja vista que a tipificação delituosa a eles imputada não corresponde àquela descrita na exordial acusatória. Alega que, no caso em comento, trata-se de homicídio consumado e, não, latrocínio, eis que o móvel de subtração de valores da vítima não restou comprovado.
Ora, a tese sustentada, além de não condizer com a realidade, é matéria fática, portanto, de mérito, e como tal será examinada oportunamente.
De mais a mais, constata-se que a sentença foi devidamente fundamentada, pois elaborada nos moldes do determinado no artigo 93, inciso IX da Constituição Federal, e se encontra formalmente perfeita.
Com essas considerações, rejeito a preliminar de nulidade da sentença, e após constatar que nenhuma outra foi suscitada pelas partes, ou qualquer delas foi verificada que devesse ser declarada de ofício, passo ao exame do mérito.
Mérito.
Passo a analisar as apelações interpostas por Guilherme Lucas dos Santos Ribeiro e Emerson Souza Batista em conjunto, tendo em vista serem idênticas as pretensões nelas deduzidas.
Os recorrentes pretendem a desclassificação do delito de latrocínio para o crime de homicídio, alegando, para tanto, a inexistência do animus furandi, consistente na inexistência de dolo em subtrair coisa alheia móvel para si ou para outrem.
A materialidade do delito está suficientemente comprovada através das informações contidas no boletim de ocorrência de f. 09/11, do relatório de necropsia e sua complementação (f. 37, 156 e 173), do exame de vistoria em local de homicídio (f. 40/59), além do documento bancário (f. 145) e das demais provas colacionadas aos autos.
Quanto à autoria, nenhuma dúvida de sua ocorrência, aliás, os próprios réus se desincumbiram de demonstrá-las através de suas declarações.
Na fase policial (f. 60/61), Guilherme relata que teria comprado um jogo de panelas da vítima no valor de R$180,00 (cento e oitenta reais), divido em parcelas de R$60,00 (sessenta reais), e, no dia dos fatos, Cleisson foi cobrar-lhe o pagamento. Entretanto, tinha apenas R$30,00 (trinta reais), motivo pelo qual aquele não gostou, mas, mesmo assim foi embora. Posteriormente, o ofendido retornou à residência, onde se encontrava na companhia do co-réu, para exigir o pagamento do restante da parcela e, quando informado que o declarante não tinha dinheiro, "a vítima teria empurrado o declarante e seu colega; Que o declarante e Emerson ainda disseram: 'isso não vai ficar assim não'; Que em seguida Emerson foi até o quarto do declarante, pegou uma espingarda polveira, de propriedade do declarante, e a apontou para a vítima, momento em que a vítima viu a arma e disse:'melhor que esta meus irmãos tem lá em Valadares'; Que o declarante esclarece que em dado momento, a vítima caminhou em direção a Emerson', enquanto que Emerson afastava-se com a espingarda na mão e esta veio a disparar atingindo a vítima no peito". Informou ainda que colocaram o corpo no veículo da vítima e, na divisa do município de Virginópolis com Peçanha, incendiaram o carro com o corpo dentro. Por fim, nega que tenha subtraído qualquer valor do ofendido, mas não sabia explicar como um extrato bancário da vítima foi encontrado em sua residência.
Em Juízo, modifica um pouco sua versão, passando a alegar que o disparo de arma de fogo teria sido acidental e que Emerson teria colocado fogo no veículo, quando já havia deixado o local (f. 147/149).
Emerson foi ouvido quatro vezes nos autos. As primeiras versões seguem a mesma linha das declarações de Guilherme (f. 62/63 e 150/151).
Entretanto, em novas declarações a autoridade policial, informou que Guilherme desferiu um golpe na vítima, momento em que esta ficou agonizando no chão da cozinha, negando a utilização da arma de fogo. Confirma que foi o co-réu que ateou fogo no automóvel do ofendido e aduz que foi orientado por aquele assumir a autoria do homicídio e que ele confessaria o incêndio para "dividirem a culpa". Alega, ainda, que estaria sendo ameaçado pelos familiares do corréu (f. 67/67v).
Ao solicitar para ser novamente interrogado perante a autoridade judiciária, Emerson confirma as declarações prestadas à f. 61/67v, retificando as outras. Tais dizeres elucidam os delitos ao descreverem em detalhes a dinâmica dos acontecimentos (f. 239/240):
"(...) que GUILHERME recebeu a vítima na sala, sendo que houve uma discussão entre eles, a respeito da divida de GUILHERME ; que a vítima disse que receberia o dinheiro de qualquer jeito e chegou a chamar GUILHERME de vagabundo; que quando olhou para a sala, apenas percebeu que GUILHERME desferiu um golpe, com uma ferramenta com cabo de madeira, na cabeça da vítima; que o interrogando estava n sala de televisão, enquanto GUILHERME e a vítima estavam discutindo na copa da cozinha; que se assustou com o golpe e virou o rosto, mas ouviu sons de outras pancadas desferidas por GUILHERME contra a vítima, não podendo precisar quantas; (...) que realmente indicou a estrada para onde se dirigiram com o carro da vítima e esta no porta malas; que GUILHERME usou o isqueiro do declarante para atear fogo no veículo; (...)".
Insta ressaltar que tais dizeres encontram consonância nos laudos cadavéricos (f. 37,156 e 173), que atestam que a vítima teve óbito decorrente de traumatismo crânio-encefálico, produzido por instrumento contundente, com posterior carbonização. Ademais, os exames policiais de f. 52 confirmam que a presença de diversas linhas de fratura no crânio e a vistoria em local de homicídio informa a apreensão de uma ferramenta tipo cavadeira com mancha de sangue no cabo.
Portanto, dúvidas não restam acerca da participação dos ora recorrentes na morte da vítima, tanto que a defesa pede apenas a desclassificação para o delito de homicídio, alegando inexistente o animus furandi.
Neste tópico, compulsando minuciosamente todo acervo probatório colacionado aos autos, entendo que os apelantes realmente não tiveram a intenção de matar a vítima para subtrair-lhe bens.
Estou convicto que o objetivo dos agentes era praticar crime contra a vida da vítima. Isso porque não está devidamente demonstrado que os réus mataram Cleisson Gomes com a finalidade específica de ofender seu patrimônio.
Ora, delito de latrocínio é um crime complexo que exige para a sua configuração, além do animus necandi, o animus furandi antecedente, ou seja, preexistente à conduta do criminosa dos agentes.
No caso abarcado aos autos, não obstante os apelantes terem assassinado a vítima e, haver indícios de terem-lhe abatido seus bens (questão esta até mesmo controvertida, tendo em vista a negativa de subtração por parte dos apelantes), vislumbro condutas autônomas, não havendo, portanto, que se falar em roubo seguido de morte.
Nesta esteira, colaciono o seguinte julgado deste e. Sodalício:
"APELAÇÃO - LATROCÍNIO - DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO SEGUIDO DE FURTO - AUSÊNCIA DE ANIMUS FURANDI NA CONDUTA INICIAL - SUBTRAÇÃO POSTERIOR - DESÍGNIO AUTÔNOMO - RECONHECIMENTO DA INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO JUÍZO A QUO - PROCESSO ANULADO AB OVO. Verificando-se das provas dos autos que o agente matou a vítima por raiva, movido pelo sentimento de vingança e, após este ato, em desígnio autônomo, subtraiu seus pertences, o crime deve ser desclassificado para homicídio seguido de furto, uma vez que, na conduta inicial do agente, não estava presente o animus furandi, elemento subjetivo da finalidade da subtração patrimonial. Diante da constatação da incompetência absoluta do juízo a quo, deve o processo ser anulado desde o seu início, remetendo-se os autos para o Tribunal do Júri" (TJMG, Ap. 485.030-0, Rel. Vieira de Brito, j. 26.04.2005).
Dessa forma, demonstrada a intenção de matar, deve ser o delito desclassificado para homicídio, de competência constitucional do Tribunal do Júri, inclusive para a capitulação adequada das condutas perpetradas pelos acusados, pelo que se impõe a declaração da nulidade do feito a partir da denúncia, inclusive.
Diante do exposto e de tudo mais que dos autos consta, REJEITO A PRELIMINAR E, NO MÉRITO, DOU PROVIMENTO AO RECURSO, para desclassificar o crime de latrocínio para o de homicídio, deixando a questão da cumulação com o crime de furto para análise e julgamento pelo Tribunal do Júri, sob pena de indevida interferência no ânimo dos jurados.
Determino, a remessa dos autos ao Tribunal do Júri da Comarca de Virginópolis para novo processamento dos autos.
Custas isentas, na forma do art. 804 do CPP.
Votaram de acordo com o(a) Relator(a) os Desembargador(es): MÁRCIA MILANEZ e DELMIVAL DE ALMEIDA CAMPOS.
SÚMULA : RECURSO PROVIDO PARA ANULAR O PROCESSO.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS
APELAÇÃO CRIMINAL Nº 1.0718.07.000548-0/001


4 comentários:

Anônimo disse...

Olá Dr. Fábio,
Pergunto um furto que se torna roubo.
Este furto que se torna roubo vira latrocínio (a arma era da vítima). A vítima esfaqueia o ladrão que toma a arma e desfere golpes no vigia. Sendo ele vigilante e não dono do bem cabe ainda latrocínio?

fabioataide disse...

Olá, no crime de roubo a violência deve ser dirigida à pessoa e não à coisa. No caso, a violência foi dirigida a uma pessoa (vigilante) e, ainda que não proprietária do bem, esta pessoa estava na condição de assegurar a sua propriedade. Assim, é possível falar em latrocínio, segundo entendo.

Camila Soares disse...

Preciso de uma jurisprudência que fale sobre a impossibilidade da tentativa de latrocínio, visto que o mesmo trata-se de mera qualificadora do crime de roubo, não sendo delito autônomo, portanto. Poderia me ajudar?
Camila Soares.

fabioataide disse...

Veja essa jurisprudência
APELAÇÃO CRIMINAL. ROUBO QUALIFICADO TENTADO. RECURSO MINISTERIAL. CONDENAÇÃO PELO DELITO DE LATROCÍNIO TENTADO. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO DA DEFESA. PLEITO ABSOLUTÓRIO. IMPROCEDÊNCIA. MATERIALIDADE E AUTORIA DEVIDAMENTE COMPROVADAS. PENA-BASE. REDUÇÃO. POSSIBILIDADE. EQUÍVOCO NA ANÁLISE DAS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS. MAJORANTE DO CONCURSO DE PESSOAS. MANUTENÇÃO. PARTICIPAÇÃO DE MENOR IMPORTÂNCIA. NÃO RECONHECIMENTO. MINORANTE RELATIVA À TENTATIVA. PATAMAR MÁXIMO. IMPOSSIBILIDADE. ITER CRIMINIS RAZOAVELMENTE PERCORRIDO. RECURSOS DEFENSIVOS PROVIDOS EM PARTE. Se o animus necandi na conduta dos acusados não restou descrito na denúncia, mostra-se inviável a condenação pela prática do delito de latrocínio tentado. Há que se manter a condenação do acusado se restou devidamente comprovada a materialidade delitiva e a atuação do réu na empreitada criminosa. Constatado equívoco na análise das circunstâncias judiciais, deve ser reduzida a pena-base imposta aos réus. Havendo demonstração inequívoca de que os acusados atuaram em conjunto na prática do delito de roubo, deve ser mantida a causa de aumento relativa ao concurso de pessoas. Tendo o iter criminis sido razoavelmente percorrido, não é possível utilizar o patamar máximo de redução previsto para a modalidade tentada do delito. (TJ-MG; APCR 5884049-97.2007.8.13.0024; Belo Horizonte; Segunda Câmara Criminal; Relª Desª Beatriz Pinheiro Caires; Julg. 27/01/2011; DJEMG 24/02/2011)
Mas veja que
O latrocínio configura crime contra o patrimônio qualificado pela morte,

e mesmo que não consumada a subtração, o latrocínio resta consumado se houve morte, já que a conduta, no caso, atinge a vida humana, bem jurídico que se encontra acima de interesses patrimoniais (Súmula nº 610 do STF).

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