terça-feira, 6 de outubro de 2009

Artigo: prescrição penal e o papel do Direito Penal

Publiquei no Boletim de Setembro do IBCCRIM artigo que trata do papel do Direito Penal e a importância da prescrição penal antecipada.

Vamos logo ao texto do artigo:

A prescrição antecipada entre o julgar e o fazer de conta

Fábio Ataíde

Juiz de Direito/RN
Mestre em Direito e professor de Direito Penal (UFRN)

ATAÍDE, Fábio. A prescrição antecipada entre o julgar e o fazer de conta. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 202, p. 14-15, set. 2009.

Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça estabeleceu, como meta para os juízes brasileiros, o julgamento de todos os casos demandados até 2005. Logo, o STF criou o Núcleo de Processamento Criminal (Res. n. 385/08), com a finalidade de dar condições para pôr fim à morosidade nas ações penais que tramitam neste tribunal. Como se não bastasse, STF e STJ trataram de regulamentar a estimativa de prazos prescricionais nos processos de natureza penal (Res. Conjunta n. 01/09).

Não obstante essas atuações administrativas, milhares dos processos criminais que demandados no Judiciário até 2005 já estão fadados à prescrição retroativa, a tomar como referência a possível pena a ser aplicada no caso concreto. Por isso, muitos magistrados reconhecem antecipadamente a prescrição retroativa. A prescrição antecipada ou virtual trata-se de uma técnica segundo a qual o julgador analisa a provável pena a ser aplicada, antes mesmo do julgamento da causa. Assim, verificando que a ação penal será considerada prescrita no futuro, reconhece-se desde já a prescrição que de fato irá acontecer.

Neste particular, ao contrário da tendência do processo penal moderno, tanto o STF (cf. HC 94.757-3/08), como também o STJ (cf. HC 111.330, DJe 09.02.09), parecem seguir em um campo meramente burocrático, sem identificar as razões práticas que levam os juízes a encontrar na prescrição antecipada uma saída para a retomada da efetividade do sistema punitivo.

Em linhas gerais, a jurisprudência dos tribunais tem afastado a aplicação da pres­­crição antecipada, ignorando enfoques práticos e a utilidade que isso pode representar para o andamento de processos judiciais. Dessa forma, muitos processos continuam tramitando sem que seja possível tirar deles qualquer efeito na proteção de bens jurídicos. São ações que, quando resultam em condenação, acabam atingidas pela prescrição retroativa, perdendo o Estado o poder de aplicar qualquer sanção.

Reforça o aspecto alegórico da lei penal a crença num Judiciário preso à lei e incapaz de inovar, principalmente no campo penal. A derrocada do Direito Penal começa com seu simbolismo. Pode parecer contraditório, mas a lei penal encontra adversários também dentre seus árduos defensores, que acreditam poder defendê-la por inteiro, sem ter de extirpar uma parte para salvar o todo.

O simbolismo penal vincula-se, primitivamente, à ideia de criminalização como fator de dissipação do medo social. Hobbes confirma assim o temor como alicerce do Estado Absoluto, de modo que o medo coletivo aparece como estopim de uma legislação penal simbólica e dissipadora do terror. Para o filósofo, de nada adianta uma lei conferir direitos se não existisse o medo da punição; afinal, “é inútil toda lei que possa ser violada sem castigo”(1), ou seja, se os juízes deixam de punir os infratores, serão os homens honestos que perderiam a liberdade(2). É assim que o punir torna-se um ato político de afirmação do poder do Estado.

Não é necessário abrir aspas para dizer que a rejeição da prescrição antecipada somente vem a reforçar o fenômeno da lei penal simbólica, assegurando uma pseudoproteção aos bens jurídico-penais. Como se já não bastasse as cifras negras, temos, dentre os casos que finalmente chegam à Justiça, uma quantidade significativa de processos que continuam a ocupar a atenção da Justiça sem que sejam capazes de produzir efeito prático.

Juízes criminais não precisam conti­nuar fazendo de conta que estão julgando. A forma como vem sendo tratado esse tema nos tribunais revela a elevada importância que se dá às normas simbólicas, inapta às finalidades para as quais são concebidas. O simbolismo penal acontece de maneira generalizada no sistema punitivo, desde institutos como a fiança até o momento da ressocialização do sentenciado.

Fazendo uma análise do instituto em estudo à luz do princípio da proibição da proteção deficiente, cabe esclarecer que a questão da prescrição antecipada não é meramente formal, mas abrange aspectos para a real proteção dos direitos fundamentais. Não é tempo de repreender juízes que reconhecem a prescrição antecipadamente; essa técnica trata-se de um meio capaz de justificar os fins aos quais prestam o Direito Penal protetor de bens jurídicos em última instância. À vista disso, não será difícil inferir que a proteção da liberdade poderia muito bem fundar a opção de deixar para um plano secundário as ações penais incapazes de proteger ditos bens. Para que assim fosse, no exame do caso concreto, o valor dos processos velhos precisa ser ponderado com o dos novos, provavelmente mais sujeitos a produzir resultados práticos efetivos na proteção de direitos fundamentais.

Se queremos estabelecer novos parâmetros para uma justiça do futuro, é chegado o momento de sacrificar o sangue de velhas ideias. Em tempo de crise social e econômica, ainda não encontramos meios de racionalizar o sistema penal para poupá-lo de gastos desnecessários. Como se não bastasse a precipitação da impunidade, inclusive nas instâncias superiores, resta entender que diversas outras crises estão bombardeando o Direito Penal, cuja resistência depende de meios que deem maior eficácia estratégica às escolhas punitivas, o que passa pela aceitação da prescrição antecipada.

A prescrição pode ser até virtual, mas os ganhos com a sua decretação são reais. Não há dúvida de que a tramitação de processo fadado à prescrição apenas consome o tempo jurisdicional que estaria disponível para outras hipóteses cuja proteção de bens jurídicos poderia ser mais eficaz. A experiência jurisdicional do caso concreto mostra ser relativamente fácil aos operadores antever a pena aplicável ao acusado. Cabe ainda considerar, quando da análise da pena provável, a orientação pioneira do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul(3), segundo o qual a demora excessiva do processo pode ser levada em conta na aplicação da pena como uma atenuante inominada (art. 66, CP). Para esse efeito, a própria demora do processo pode justificar a atenuação da pena-base, ajudando a estabelecer critérios para demonstração da pena provável aplicável.

Contudo, muitos tribunais ainda não perceberam os efeitos colaterais que o processamento de ações penais sem nenhuma utilidade causa sobre outros processos que poderiam dar algum resultado. Ocupar um juiz com o trâmite de um caso sem utilidade, muitas vezes amparando a busca de testemunhas que nem ao menos lembram dos fatos, é o mesmo que impedi-lo de dar andamento aos outros casos com real consequência para a proteção de bens jurídicos fundamentais.

Eugênio Pacelli de Oliveira explica que “as ciências, e assim toda a formulação de suas proposições, servem ao homem e na medida em que se revelem aptas a satisfazer as finalidades últimas deste”. Para o autor, o “processo sabidamente inútil não implica apenas a perda de atividade pública já desenvolvida; implica aumento de despesas e, por isso, de patrimônio e de serviços públicos, e, mais, incremento da burocracia estatal judiciária, já suficientemente atingida pelo descomunal número de processos em curso e em diária distribuição”(4).

O Estado tem o Direito Penal à disposição para enfraquecer o domínio da violência privada, mas pode conseguir justamente o contrário quando opta por dar mais força à punibilidade. E é assim que os tribunais não poderiam dar aos juízes um comando de não-efetividade, mas acabam referendando o não-julgar quando orientam instruir processos incapazes de proteger bens jurídicos. Na prática judiciária, já não se sabe onde termina o julgar e começa o fazer de conta, afinal de contas.

NOTAS

(1) HOBBES, Thomas. Do cidadão. 3ªed.,trad. Renato Janine Ribeiro.São Paulo:Martins Fontes,2002, p.222.

(2) ibidem, p.212.

(3) TJRS. Ap. crime n. 70.007.100.902, 5ª C. Crim., Rel. Luís Gonzaga da Silva Moura, j. 17/12/03.

(4) Processo e Hermenêutica na Tutela Penal dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 72.

Fábio Ataíde
Juiz de Direito/RN
Mestre em Direito e professor de Direito Penal (UFRN)

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