O
estudo crítico da criminologia ou das criminologias que se acumulam ao longo da
história depende da compreensão dos discursos que emanam a partir do paradigma
do livre arbítrio. Isso não apenas significa o acolhimento do crime como uma
decisão humana, mas sobretudo que o sistema penal deve ser humanizado para uma
pessoa com liberdade de escolher entre o certo e o errado.
Ainda
hoje o ordenamento jurídico luta por sua humanização e esse projeto não se
concretiza por que depende da compreensão do homem real de que tantos tememos.
Por que temos ansiedade de nós mesmos?
O
cinema não resolve essa questão, mas nos expõe muito bem a ela. Quem Tem Medo de Virginia Woolf?
(dirigido por Mike Nichols, 1966) cumpre a tarefa da necessária exposição ao
medo de nós mesmos. O filme retrata os conflitos de George (Richard Burton), um
professor de História casado com Martha (Elizabeth Taylor), filha do Reitor da
Universidade onde leciona. Depois de um encontro com um casal amigo, as
verdades humanas aparecem a partir de Martha, uma mulher imprevisível, rica,
mimada, mãe atormentada, esposa insatisfeita com o fracasso de seu marido em
assumir a direção dos negócios do seu pai.
Os
diálogos dos personagens certamente inspiraram Deus da Carnificina de Polanski (2012); são frenéticos, celebrais
intercalados por breves pausas necessárias. Estão assim estruturados em torno
de um corte histórico-biológico, como deve ser o pensar criminológico. Não é à
toa que dois dos personagens são professores de história e biologia, sulcando
as raízes do patriarcado, de onde brota uma mulher dilacerada por conflitos e
incapaz de saber em que ponto da vida fora enganada.
Os
homens do filme contam histórias de fracasso e cobiça. George, o marido de
Martha, não teve sucesso perante os valores da sociedade americana. Um sádico
incompetente, tanto quanto à impossibilidade de transmitir seus genes e de
assumir os negócios de família. As mulheres por seu turno negam a função da
maternidade.
Com
o pano de fundo da política do mundo acadêmico, esse pode ser um filme de
crítica à dogmática. Aos poucos, os personagens revelam o homem em suas
fragilidades, traumas e ambições. Toda essa inteligente desconstrução girará em
torno da instabilidade da realidade inventada pelo próprio homem, ou seja, por homens
que de um lado não cumprem satisfatoriamente os papeis sociais e de outro por
mulheres que rejeitam os seus. Não procure culpados em uma relação atormentada
como a que estamos vendo.
O
final do drama cai em nosso colo como um órfão que acabou de sair de um “atoleiro
imoral”, parafraseando uma das falas dos personagens. Depois de tudo, teremos a
sensação de quem se descobre iludido pela criminologia conservadora, bela,
recatada e do lar. “Onde fui me meter”?
Para
ter algum sucesso, a criminologia depende do homem real e por tal razão não há
como definir uma política criminal igual para todos. Se todos são diferentes em
seus dramas individuais, como pensar um saber que explique isso uniformemente.
A criminologia tradicional fez isso, primeiro tomando o indivíduo
patologicamente e depois analisando-o em seu meio, mas falhou em todas essas
tentativas, simplesmente por desconsiderar que o crime pode ser também uma
realidade inventada pelos nossos próprios medos.
A criminologia conservadora tem problemas
para definir o homem criminoso como anormal, simplesmente por que em um olhar íntimo
ninguém existe na normalidade. Não estamos apenas vendo um filme com uma mulher
dominadora e complicada para relacionamentos, imprevisível e dada a fazer novas
amizades, casada com um professor desinteressado com os assuntos financeiros. Fica
claro que se revela nesse filme a vida cotidiana de qualquer indivíduo na sociedade do conflito, em que os
personagens estão insatisfeitos com seus papeis e assim trocam agressões mútuas
como que deixando claro as razões pelas quais o homem ainda precisa de humanização.
Não sei como o Direito Penal ainda
continua sendo “vendido” como discurso “coerente e racional” pela criminologia
conservadora, bela, recatada e do lar. De qual lar? O de George e Martha? Bom
filme.
Filmes
Quem
Tem Medo de Virginia Woolf?
Deus
da Carnificina
Fábio Ataíde
Juiz de Direito
Professor de Criminologia/UFRN
Ensaio publicado originalmente no Portal BCEJ,
http://bcej.com.br/ciencias-criminais/uma-criminologia-bela-recatada-e-do-lar/?preview_id=1019&preview_nonce=a70f9342e6&preview=true