segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Uma criminologia bela, recatada e do lar




O estudo crítico da criminologia ou das criminologias que se acumulam ao longo da história depende da compreensão dos discursos que emanam a partir do paradigma do livre arbítrio. Isso não apenas significa o acolhimento do crime como uma decisão humana, mas sobretudo que o sistema penal deve ser humanizado para uma pessoa com liberdade de escolher entre o certo e o errado.
Ainda hoje o ordenamento jurídico luta por sua humanização e esse projeto não se concretiza por que depende da compreensão do homem real de que tantos tememos. Por que temos ansiedade de nós mesmos?
O cinema não resolve essa questão, mas nos expõe muito bem a ela. Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (dirigido por Mike Nichols, 1966) cumpre a tarefa da necessária exposição ao medo de nós mesmos. O filme retrata os conflitos de George (Richard Burton), um professor de História casado com Martha (Elizabeth Taylor), filha do Reitor da Universidade onde leciona. Depois de um encontro com um casal amigo, as verdades humanas aparecem a partir de Martha, uma mulher imprevisível, rica, mimada, mãe atormentada, esposa insatisfeita com o fracasso de seu marido em assumir a direção dos negócios do seu pai.
Os diálogos dos personagens certamente inspiraram Deus da Carnificina de Polanski (2012); são frenéticos, celebrais intercalados por breves pausas necessárias. Estão assim estruturados em torno de um corte histórico-biológico, como deve ser o pensar criminológico. Não é à toa que dois dos personagens são professores de história e biologia, sulcando as raízes do patriarcado, de onde brota uma mulher dilacerada por conflitos e incapaz de saber em que ponto da vida fora enganada.
Os homens do filme contam histórias de fracasso e cobiça. George, o marido de Martha, não teve sucesso perante os valores da sociedade americana. Um sádico incompetente, tanto quanto à impossibilidade de transmitir seus genes e de assumir os negócios de família. As mulheres por seu turno negam a função da maternidade.
Com o pano de fundo da política do mundo acadêmico, esse pode ser um filme de crítica à dogmática. Aos poucos, os personagens revelam o homem em suas fragilidades, traumas e ambições. Toda essa inteligente desconstrução girará em torno da instabilidade da realidade inventada pelo próprio homem, ou seja, por homens que de um lado não cumprem satisfatoriamente os papeis sociais e de outro por mulheres que rejeitam os seus. Não procure culpados em uma relação atormentada como a que estamos vendo.
O final do drama cai em nosso colo como um órfão que acabou de sair de um “atoleiro imoral”, parafraseando uma das falas dos personagens. Depois de tudo, teremos a sensação de quem se descobre iludido pela criminologia conservadora, bela, recatada e do lar. “Onde fui me meter”?
Para ter algum sucesso, a criminologia depende do homem real e por tal razão não há como definir uma política criminal igual para todos. Se todos são diferentes em seus dramas individuais, como pensar um saber que explique isso uniformemente. A criminologia tradicional fez isso, primeiro tomando o indivíduo patologicamente e depois analisando-o em seu meio, mas falhou em todas essas tentativas, simplesmente por desconsiderar que o crime pode ser também uma realidade inventada pelos nossos próprios medos.
A criminologia conservadora tem problemas para definir o homem criminoso como anormal, simplesmente por que em um olhar íntimo ninguém existe na normalidade. Não estamos apenas vendo um filme com uma mulher dominadora e complicada para relacionamentos, imprevisível e dada a fazer novas amizades, casada com um professor desinteressado com os assuntos financeiros. Fica claro que se revela nesse filme a vida cotidiana de qualquer indivíduo na sociedade do conflito, em que os personagens estão insatisfeitos com seus papeis e assim trocam agressões mútuas como que deixando claro as razões pelas quais o homem ainda precisa de humanização.
Não sei como o Direito Penal ainda continua sendo “vendido” como discurso “coerente e racional” pela criminologia conservadora, bela, recatada e do lar. De qual lar? O de George e Martha? Bom filme.

Filmes

Quem Tem Medo de Virginia Woolf?

Deus da Carnificina
Fábio Ataíde
Juiz de Direito
Professor de Criminologia/UFRN
Ensaio publicado originalmente no Portal BCEJ, 

http://bcej.com.br/ciencias-criminais/uma-criminologia-bela-recatada-e-do-lar/?preview_id=1019&preview_nonce=a70f9342e6&preview=true